Conto | Giovana Madalosso

Quem precisa de Bariloche?

dez

Eu não lembro bem de quem foi a ideia. Minha, com certeza, não foi. Eu era só uma menina de seis anos. Eu acho que a ideia foi da minha mãe, porque o meu pai podia passar a vida inteira consertando coisas e dando comida para os passarinhos no quintal que estava tudo bem, mas a minha mãe não, a minha mãe vivia lambendo os dedos e folheando páginas de revistas e dizendo: era isso que a gente devia fazer.

A página ficou colada um tempo na geladeira. Era um morro coberto de neve, um homenzinho lá no alto descendo com um esqui. No começo minha mãe disse que íamos andar em teleféricos e deslizar em montanhas como aquela, depois passou a dizer apenas que iríamos ver a neve.

O plano tinha uma logística complexa que eu, pequena, não conseguia entender. Durante quase um mês ficamos com as malas prontas à espera de um chamado. Algo como uma corneta que soaria através da boca da minha mãe, fazendo com que nos vestíssemos em tempo recorde e nos apresentássemos com as malas junto ao carro, soldados alistados para guerra. Enquanto a corneta não soava, esperávamos, as malas debaixo da cama, enquanto minha mãe checava as notícias em algum lugar longe dali.

Eu estava na escola quando a minha mãe apareceu. O gorro de pele de coelho se projetando para dentro da porta. Eu lembro que alguém deu risada, porque não era um dia frio, estávamos de camiseta de manga. Saí andando atrás dela. O gorro tinha um rabo pendurado na parte de trás, um rabo que sacudia no ritmo dos passos dela. Entramos no carro. Meu pai e minha irmã estavam nos esperando. Ele na direção, ela no banco de trás mascando chiclete (ela sempre estava mascando chiclete).

Saímos em direção ao Sul, nome que julguei, por uma boa parte da viagem, ser o nome da cidade para onde estávamos indo. A cada cidadezinha que surgia, eu esperava ver as três letras grandes de concreto enfileiradas sobre a grama, mas os nomes, que eu sempre lia em voz alta, eram muito mais compridos, coisas feias como Papanduva, Urupema e Sepultura. Acho que foi nessa última que dormimos. Ou em alguma outra perto dela.

Minha mãe não queria parar. Ela queria que meu pai tocasse direto até o destino. Ela trouxe uma garrafa térmica e, durante a viagem, ficava o tempo todo oferecendo café pra ele, mas teve uma hora que ele disse: chega, eu preciso fechar os olhos. Lembro que ela ficou nervosa. Disse que não podíamos parar. Que, se era assim, ele que saísse do volante, ela mesma dirigiria, mas todos nós sabíamos que ela estava blefando, porque uma vez ela tinha entrado numa auto-escola e brigado com a instrutora logo na primeira aula. Tudo que ela sabia fazer era andar reto engatando até a segunda. Então ela não teve outra opção senão ficar quieta e procurar um hotel com a gente.

Paramos no primeiro que apareceu. Ficava junto a um posto de gasolina e tinha uma estrela que ficaria muito mais adequada no céu do que na sua fachada. Isso é o que eu penso hoje, ao lembrar do corredor estreito e escuro, da porta que quase despencou ao ser aberta, do quarto cheirando a mofo e chucrute (o dono do hotel era alemão). Mas na época, o meu olhar era outro, e eu me encantei com o corredor estreito e escuro, com a porta que não era a nossa porta, com o quarto cheirando a alguma coisa que eu não sabia o que era. E também tinha a janela, virada para um estacionamento grande e vazio, coberto por um céu estalando de limpo.

A minha mãe nem chegou até a janela. Tirou rápido a roupa e já se enfiou debaixo da coberta, recomendando que fizéssemos o mesmo, porque dali a cinco horas, e nem um minuto a mais, estaríamos pegando a estrada de novo. A minha irmã também deitou-se, com a roupa que estava, deixando o chiclete grudado no encosto da cama. Ficamos eu e meu pai, olhando para fora. Como eu disse, o céu estava estalando de limpo e, fora ele, fora a sua coleção infinita de estrelas, não tinha muito o que se ver. Mesmo assim, ficamos um tempo observando o estacionamento, a paisagem imóvel em volta dele, até que meu pai pôs a mão no meu ombro e disse: vâmo, a gente precisa descansar.

Acordei com a voz da minha mãe, com ela botando o braço para fora da janela e dizendo pra gente levantar que estava tudo ótimo, tudo correndo como o esperado. Minha irmã pegou o chiclete que estava grudado no encosto da cama e pôs na boca (segundo ela o movimento do maxilar ajudava a aquecer o corpo). Vestimos as nossas roupas. Era engraçado porque nada servia direito. Morávamos em uma cidade quente, onde era verão o ano inteiro, e não tínhamos roupa de frio. Nossos casacos, gorros e luvas foram emprestados de parentes para aquela viagem. Era tudo justo ou solto demais. Meu pai, coitado, estava usando um poncho com dois pompons que batiam nos seus joelhos. Mas nem tivemos tempo de nos olhar no espelho, de nos admirar com aqueles trajes exóticos, porque a minha mãe já estava na porta chamando pela gente.

Acho que o dono do hotel acordou com o barulho, porque de repente apareceu, com cara de sono, de ceroula e chinelos e, depois de pegar a chave do quarto, disse que tinha uma boa notícia. Que, durante a madrugada, um caminhoneiro que tinha chegado no hotel, vindo lá de baixo, contou que estava tudo branquinho. Lembro que nos entreolhamos, como quatro colegas da mesma idade. Depois demos tchau para o alemão e pegamos a estrada.

Não sei bem quanto tempo levamos para chegar. Fui eu que apontei para a arvorezinha coberta de neve, a sombra do portal da cidade. Lembro que minha mãe olhou para a árvore e disse: quem precisa de Bariloche?. Depois abriu a janela e tirou uma foto. Meu pai perguntou se queríamos descer, se queríamos fazer uma foto na frente da árvore, mas a minha a mãe disse que não, que era para ele seguir reto, até a praça central, onde tinha uma igreja e um jardim que, como ela viu no site da prefeitura, ficavam espetaculares vestidos de branco.

Não sei se eles perceberam no caminho. Eu, na minha inocência de criança, não percebi. Eu fiquei achando que a praça ia surgir de repente, sob uma chuva de flocos cintilantes, como aquelas miniaturas dentro do globo de vidro de um souvenir. Mas claro que, como as calçadas e telhados já anunciavam, isso não aconteceu.

O sol chegou antes de nós e derreteu quase toda a neve de São Joaquim. Só sobraram alguns montinhos, sobrevivendo tímidos pelos cantos. De resto, era só uma aguarada suja e cinza escorrendo pelos galhos, calhas e bueiros. Num canto da praça, ainda tinha a cabeça de um boneco, com dois botões e uma cenoura, mas já tão disforme, tão liquefeita, que mais parecia um encontro acidental entre dois objetos e um legume.

Depois de andar em volta da igreja, procurando, em vão, algum resquício de neve decente para fotografar, minha mãe começou a gritar com o meu pai, a dizer que a culpa era dele, que se não tivessemos parado para dormir, se tivessemos chegado antes do sol, a neve ainda estaria lá. Meu pai disse para ela se acalmar, quem sabe nevaria de novo, mas todos nós sabíamos que isso era improvável. Estávamos num país tropical e a pequena São Joaquim só dava a sorte de ter neve uma ou duas vezes por ano.
Sentamos numa mureta. Ficamos quietos, olhando os moradores e turistas passarem, imagino que com uma vontade secreta de roubar deles a lembrança do que só eles tinham visto. Um tempo depois, uma mulher passou por nós e, apontando para a câmera que estava no colo da minha mãe, perguntou se queríamos que ela tirasse uma foto. Minha mãe entregou a câmera para ela. Meu pai tirou o poncho correndo. Demos risada e nos juntamos para a foto.




Giovana Madalosso nasceu em Curitiba e mora em São Paulo. É roteirista de TV, redatora e escritora.
Nina Moraes Ilustração