Conto | Flavio Jacobsen
Anno Domini 1972
Ilustração: CDG
Em criança, levado para assistir à Missa do Galo pela avó, paróquia de Santa Cecília. Quatro anos de idade, ainda chorava, resistia, ante as assustadoras imagens de penitência e sangue. Havia algo de Sade no ar. Tudo se transformava quando dava início o coral. O paraíso vinha. Nas ausências da música, o rito em latim conferia a liturgia imprescindível. É o que ele lembrava décadas depois, à frente de um computador, no décimo andar do prédio, área central da megalópole.
A moça da recepção irrompe a sala.
— Não encontrei o presente, seu Boris.
Ele não desvia o olhar da tela. Faz um sinal de positivo, sem palavra. A secretária entende, faz menção de sair, dá meia volta.
— Tô indo embora. Sem problemas? Já deu seis horas.
Outro sinal de positivo. Sem problemas. Ela sai. Desvia o olhar ao trânsito lá embaixo, recosta-se à cadeira, pensativo. Entra o Macedo, fotógrafo.
— Tomar aquelas, malandragem? Tá na hora e amanhã é véspera de Natal.
— Tenho que comprar um presente, responde, sem olhar.
— Pô, Boris. Vamos nessa, cara. Que coisa! Compra amanhã.As coisas ficam abertas até as quatro da tarde.
— Putz, não sei...
— Hoje é dia! Macedo sempre animado, mesmo antes de consumir as substâncias mágicas, ainda.
Boris se vira, começa a desligar o computador. Tudo certo. Umas e outras. Pés sujos pra começo. Depois alguma coisa gourmet. Churrascaria e uísque. Chopes enfileirados. Algumas amigas. Conversa fiada.
— Boris tá quieto. Apaixonado o moço, decerto. Uma.
— Ele é sempre assim. Fim de ano não vê a hora de praia. Outra.
— Eu já comprei meu biquíni! Mais uma. Até que deu.
Daí uma pequena prova das substâncias mágicas do Macedo. Breve, é meia-noite. Mais uma. Roda de samba nas biroscas profundas. A coisa começa a decair. Lembra do presente. Amanhã cedo. Várias saideiras na padaria vinte quatro horas na esquina do Arouche. A ladeira não tem fim, já sob o viaduto, um cachorro-quente.Gravata frouxa e tubo de mostarda na mão, copo de plástico com chope artesanal apoiado em uma banqueta. Macedo fala sem parar. Umas prostitutas lhe constituem plateia. Começa a bater fotos com sua Nikon velha de guerra.
— Manchou tua Hermés. Tá amarelinha!
— Putz... Ele sempre diz “putz”. Não bate foto, não! Olha só! Tá feio.
— Feio é roubar e não poder carregar! E dá mais alguns cliques lambuzados, com as meninas a tiracolo.
Táxi pra um inferno na Augusta e a noite não tem fim. No meio do solo de bateria de um projeto de John Bonham, deixa Macedo sem tchau e entra no táxi, querendo o rumo de casa. Não dá mais. Seis e meia da manhã. No trecho, Santa Cecília e a igrejinha. Lembra do presente e pede pra descer. Um camelô vende badulaques católicos em frente.
— Quanto é aquele terço de madeira?
— Trinta e cinco, compadre! Dois por um galo!
Fica com um, dá cinquenta e deixa o troco. Antes de voltar ao táxi, olha o povo se aglomerando para a missa das sete. Corte para o menino descendo as mesmas escadas, quatro décadas antes, saindo de mãos dadas com a avó. O padre parecia Otelo Zeloni, que interpretava Dom Camilo na tevê Tupi.
— Você sabe onde fica Tatuí? Ele, ao motorista.
— Sei. Tatuí, moço? Mas é longe, hein?
— Toca pra lá.
— Tem certeza? É uma viagem. Vai sair caro.
— Não tem problema. Manda ver.
Asilo São Vicente. Idosas com qualidade de vida e carinho, diz o panfleto, amassado no bolso interno do paletó. Na partida do automóvel, alguém afina o órgão em oito pés, spitzflöte, que se faz audível, de dentro da capela. Com a paz da melodia, volta o menino.
— Vó! O Dom Camilo usa saia! A senhora se ria, apesar de envergonhada.
Flavio Jacobsen nasceu em Santos (SP), em 1967. Trabalha como redator e roteirista. Estudou História e Cinema. É autor de Uns contos no bolso (2015). Vive em Curitiba (PR).