Conto | Bruno Zeni

Memória em branco e preto II

O uniforme confere ao rapaz austeridade e a aparência de ter vivido muito — treinamentos, batalhas, ameaças, provações, outras cerimônias de importância. Mas o que me atrai intensamente é o rosto anguloso e quadrado, onde me procuro e, antes que a mim mesmo, identifico mais a um primo e certa mistura dos meus irmãos.

arquivo de família
Minha avó fez um penteado especial e vestiu roupa chique. Seu semblante é circunspecto, como de costume [sinto, porém, que de alguns anos para cá ela está bem mais jovial]. Meu avô não ostenta tanta compostura. Largo e enjambrado, o terno não lhe parece feito sob medida. Era magro e desafogado, o meu avô paterno. Olha a câmera de soslaio e tem o corpo em diagonal [de fianco, diria ele, como diz meu pai?]: um dos flancos se volta para o fotógrafo, como se evitasse a lente da ocasião.

Há uma igreja ao fundo e muitas pessoas em torno. Antes ou depois da solenidade?

Falei da fotografia do pai vestido de militar, numa das visitas que fiz a minha avó. Não precisei dizer mais — ela sabia a que foto eu me referia. Era a entrega de armas do CPOR, disse ela. Na verdade, a missa depois da entrega de armas, emendou.

O serviço militar era comum então, como se uma etapa da existência dos homens da geração passada. Uma forma de se estabelecer na vida, ascender socialmente. Conferia respeitabilidade, honorabilidade, benemerência — palavras que já não se empregam, pelo menos aqui, no país, em nossa classe e inclinação profissional, ou nesta família, hoje destituída de hierarquia e insígnia.

Por que teriam meus pais escolhido esta imagem para o painel de fotos familiares? Mera lembrança de juventude, uma data significativa, uma vocação interrompida [o futuro tenente não seguiria carreira], um destino que se prolongou mas não se cumpriu até o fim. Em armas, o garoto com quem pareço, mas não muito, me desafia ou me guarda?


Bruno Zeni nasceu em Curitiba, em 1975. É jornalista, escritor e doutor em Letras pela USP. Trabalha como editor-assistente no selo Três Estrelas e dá aulas de Criação Literária na Casa das Rosas e na Academia Internacional de Cinema. É autor de Corpo a corpo com o concreto (2009). Este texto é parte do livro inédito Paisagem desacordada, que conta com o apoio do ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo). Vive em São Paulo (SP).