Conto: Antes de abatê-los

conto

Tem este velho do décimo sétimo. Ele está internado. Morrendo. Talvez não volte do hospital. Aluga salas. É dono de trinta e oito conjuntos comerciais neste prédio. Seu escritório tem grossas grades protegendo a porta. Estamos em horário comercial. E a porta e a grade, abertas. O velho nos diz bom dia. Vejo seus pés só com meias. Os sapatos de couro ao lado. Que bom, tem uma mulher bonita no trio, ele diz. A gente ri. Cadê o dinheiro? O velho é direto. Meus olhos passeiam pelas paredes carcomidas da sala abarrotada de pastas e caixas de arquivos. Minha sócia conta as cédulas, em seguida alcança o maço ao velho. Ele pergunta se minha sócia é casada. Meu filho também não é. O seu filho trabalha aqui com o senhor?, pergunta meu sócio. É bom ouvir sua voz aguda. Esqueço que ele sabe falar. Nunca lembro que ele está entre nós. Meu sócio é invisível. A mãe dele se incomoda, viu, a coitada sofre de pressão alta, qualquer dia cai dura. O senhor pode me dar um recibo, diz minha sócia. Claro, o recibo, repete o velho. E procura com os pés os sapatos debaixo da mesa. Ele arfa. Só então levanta da cadeira, um corpanzil de quase dois metros de altura e larga estrutura. Lento paquiderme sem idade. Resurge de dentro de um dos arquivos. Vou mostrar a vocês o meu tatu. Ele tem uma faca reluzente na mão. O cabo é feito de casco de tatu, diz. Você já esteve fuça a fuça com um bicho destes? Olho novamente para baixo da mesa, o tapete me enoja. Adoro o aço, diz o velho, tenho mais de noventa facas em casa. Eu e o velho naquela fazenda, de tocaia, espingardas em punho. Vamos cercá-los. O velho conversa, encanta os animais antes de abatê-los. Adoro o aço e a pólvora, também coleciono armas de fogo.


Peste uma peste

Ando no corredor escuro. No fim dele vejo uma mulher trajada a rigor. Se eu tivesse conhecimento cartográfico. Ardem as solas dos pés. De onde venho? No percurso fui derretendo as solas dos sapatos, deixando para trás farrapos das meias. Sigo. O chão, o fundo dos vulcões. Não há janelas neste corredor. Espremo na narina o descongestionante nasal. Sempre desejei morrer no miolo de tudo o que possuo. Há uma luz no fundo. Da mulher iluminada me aproximo. É uma peste, diz a meu respeito. Na escuridão, sou somente a ponta do cigarro que trago aceso. Não dou uma banana porque ninguém diz é proibido fumar aqui. Tenho frutas nos bolsos. E mosquitos que vieram com elas. Chego na luminosidade que perseguia. Ninguém se abala com o berro que vem de dentro da sala à direita. Procurar esse lugar fez de mim um homem passado da meia-idade.
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A porta está aberta, mesmo assim bato na porta pedindo licença. Entro. Há quanto tempo não vinha a essa escola. Aceno para mulher em pé com giz na mão. Sento na última carteira da fila que está bem no meio da sala. Não há janelas, só uma fresta na veneziana. Foda-se a vida. Eu não devia ter vindo. Tanta claridade explodindo em meus olhos, não posso desenhar com precisão o rosto da mulher. Ela ameaça jogar o apagador em mim porque converso sem parar com as outras crianças. É uma peste. Apago o cigarro na nuca do menino gordo sentado em minha frente. Agora entendo de onde vinha o grito. A mulher apaga o quadro. Ninguém se abala com o gordo se esgoelando. Ela apaga e apaga e apaga o quadro verde, o pó do giz, neblina na sala. Ela limpa as mãos no jaleco, a mulher trajada a rigor. Sua boca se abre, posso ver, é grande, os dentes são perfeitos, brancos, a língua vermelha e amarela como lava. Sou incapaz de capturar as frases que soam sobrepostas. Só ouço o eco é uma peste uma peste peste. Quando eu era seu filho ouvia nunca mais você me deu um beijo na cara. Será isso? O lobo com bafo podre e presas afiadas de um conto em que o final nem sempre é um ensinamento edificante. A criança sentada ao meu lado sugere pisque lentamente, as pálpebras são o que temos de melhor para demonstrar gratidão. Os dias, ao contrário de se arrastarem com correntes atadas aos tornozelos, deveriam ser um começo empilhado em cima de outro começo. O berro do gordo ainda está no ar, como fosse o vagido de alguém que nasce. É uma piedade torpe a que sinto por ele. Meu coração está dilacerado por metáforas, sentimentalismo e tanta caraminhola. Comove aquele que está a colar penas umas nas outras com o intuito de produzir asas. Mas o paraíso é sempre tão reles. Levanto. Saio da sala. Entro em outro corredor. Penso ir na direção do banheiro. Sigo o escuro. Peste uma peste peste. Quem ama ama, e isso é uma impossível verdade. Nunca mais você me deu um beijo na cara. Quem ama ama quem ama, eis. Mesmo quem ama nem sempre consegue ser angelical.

Luiz Felipe Leprevost é poeta e escritor, autor dos livros Tornozelos deitados (2005), Cecília roendo unhas (2005) e Ode mundana (2006). Acaba de lançar o romance E se contorce igual a um dragãozinho ferido (2011). Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Diego Gerlach