Conto | Altair Martins

Micro-história de uma fotografia

Quando Abimbola fez o credenciamento, na Arena da Baixada, em Curitiba, respondeu em português: 

— Fotógrafo. 

Fotógrafo e fotografia eram as únicas palavras que Abimbola sabia em português. E ninguém perguntou onde as tinha aprendido.

O jogo era a estreia da Nigéria. A rigor, as superáguias enfrentariam a partida mais fácil da fase classificatória da Copa no Brasil, contra o Irã. Depois viriam a Bósnia e a Argentina. Abimbola estaria em todas elas, fotografando, inclusive a derrota para a França, nas oitavas-de-final. Mas o seu jogo foi aquele, e Abimbola nem viu que era contra o Irã.

Naquela tarde em Curitiba, diante de quase 40 mil pessoas, Abimbola esqueceu que era nigeriano, que a Nigéria jogava e contra quem. O jogo, um zero a zero chato, foi considerado o pior da Copa. Mas Abimbola não o viu. Fotografou tudo, mas não viu nada. Quando Moses cobrou o escanteio e Emenike faz o gol que o juiz anulou, aos 3 minutos, Abimbola não viu nem a brazuka balançando as redes nem a mão erguida do árbitro. Quando Onazi chutou rente à trave iraniana, Abimbola também não viu nem o time do Irã nem a trave. Não viu ainda quando Oboabona, lesionado, saiu para a entrada de Yobo, um Yobo que ele também não viu. Não viu o goleiro Enyeama salvar a Nigéria aos 33, Ambrose ser vaiado aos 72, nem Ameobi perder o gol aos 90. Ouviu apenas as vaias finais, quando abandonou o jogo e foi fotografar os torcedores brasileiros que deixaram de vaiar as equipes e passaram a gritar para ele, Abimbola, como se torcessem por ele:

— Fotógrafo, fo-tó-gra-fo, fotógrafo! 

Reconhecia a palavra e, em transe, num país estranho, lembrou ter respondido àquela pergunta, há 52 anos. Na época, sequer imaginava até onde uma vontade o levaria: 

— Quero tirar fotografia. 

Só a última palavra foi dita em português: fotografia. Era em Gusau, quando Zamfara ainda pertencia a Sokoto, e a Nigéria toda não tinha sequer 100 milhões de habitantes. Ele era uma criança yorubá de 6, 7 ou 8 anos, talvez mais, porque não tivera registro de nascimento, e viu aquela coisa cinzenta roubar o mundo de fora pra dentro, e só então conheceu o mundo ele mesmo, e por isso respondeu repetindo aquela palavra em português: 

— Fotografia. 

Aprendeu o que era fotografia com um casal de fotógrafos que estivera em Gusau e lhe tinha fotografado com a máquina na mão. Era a foto de uma curiosidade: ninguém lhe tinha ensinado o que era Abimbola. Olhando a imagem, o menino yorubá desejou nunca mais parar de vê-la. E entendeu que o verdadeiro Abimbola era aquela fotografia. Aprendeu ali a fotografar os bichos e as pessoas, e isso ficou fotografado com ele em destaque. A máquina, uma King Regula Rapid, com bolsa de couro, ele a ganhou de Tim Motion, o rapaz irlandês que trouxera a namorada de Portugal para registrar a África em preto e branco. Para o pequeno Abimbola, aquela câmera meio que fundava um mundo. Nela, ficou o nome do fotógrafo e a etiqueta em que colou a palavra que o menino tanto gostava de repetir e que nunca deveria esquecer:

— Fotografia.

   Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo
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Foi contra a vontade do pai e dos tios, que o queriam carpinteiro, agricultor, pescador, soldado ou cortador de cana, que Abimbola resolveu levar a câmera para as cidades grandes. Para onde aquilo ia empurrar o rapaz Abimbola?, o pai questionava, usando, como o filho, só a primeira palavra em português:

— Fotografia não se come.

Mas Abimbola trocou por serviços braçais a chance de revelar seu único filme. Trocou fotos por comida. Vendeu outras fotos para turistas em Abuja, e comprou mais filmes e tirou mais fotos. Teve sua King roubada, adoeceu, comprou outras e outras máquinas, lentes, tripés. Quando foi a Lagos, diferente dos outros meninos africanos, não foi para o sonho de jogar futebol. Abimbola sabia quem eram Babayaro, Chukwu, Ikpeba, Taribo West, Amunike, Yekini, Kanu e Okocha por fotografias, muitas das quais ele já era o autor. Foi pra isso, justamente pra isso, que viera para os grandes centros: era fotógrafo, dizia, usando a palavra ainda em português. Contratado desde 1994 pela Federação Nigeriana de Futebol, tornou-se ícone em seu país como fotógrafo esportivo. O pai nunca mais o quis ver e se atemorizava quando lhe mostravam alguma imagem do filho em jornal. Resmungava a palavra fotografia em meio a deprecações em yorubá, rezando contra o feitiço ruim que fazia o filho roubar a cara dos outros.

Então, mergulhado no país que entendia a sua palavra mágica, só o que Abimbola queria era que o pai o visse ali e escutasse aquilo que o estádio inteiro passava a cantar: 

— Fotógrafo, fotógrafo! 

Era final de tarde, e Abimbola foi até os limites do campo. Ergueu seu equipamento. A torcida de Curitiba entendeu. Os que estavam próximos se aglomeraram. Abimbola esticou o monopé da câmera e desejou que ela fosse a King e imprimiu-se na fotografia em que brasileiros gritavam aquela palavra confortável, a mais confortável que já tinha ouvido. Um menino com a camiseta do Brasil quis ver a imagem na tela, e Abimbola mostrou, fotografando por fim ao menino e a si mesmo.

No hotel, só quando repassou as fotos, Abimbola viu o jogo: uma Nigéria apática ficou com a bola na maior parte das imagens, mas que não conseguiu vencer o Irã. Viu jogadores ao chão, chutes errados, a deformidade fenomenal da bola. Entendeu o jogo ruim. E, nas últimas fotos, viu a torcida, viu a si mesmo dizendo para um menino com a camiseta do Brasil, um menino que o olhava apontar para a câmera: 

— Fotografia. 


Altair Martins nasceu em 1975. É professor da Faculdade de Letras e de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Autor do livro de contos Como se moesse ferro (1999) e do romance A parede no escuro (2008), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Vive em Porto Alegre (RS).