Conto
Todos os anjos
Luiz Vilela
Como são as coisas, ele já pensara e estava de novo pensando ali, enquanto, sentado num banco da praça, esperava pelo filho: ele, que, ao longo de toda a sua juventude, à custa de muita reflexão, muita leitura e às vezes com muita dor, conseguira escapar do “pestilento pântano da religião”, como dizia, ele era agora, pelas contingências da vida em família, obrigado a levar toda sexta-feira, à tarde, hora em que a mulher ainda não voltara do serviço, o filho para, veja só, a aula de catecismo.
— É... — disse para si mesmo, resignado, e logo viu o menino, que, saindo da igreja com outros, entrara na praça e vinha, sozinho, andando devagar, em sua direção.
Levantou-se e deu-lhe a mão:
— Vamos?
Os dois foram.
Ao passarem sob as árvores, antigas e altas, o menino se curvou quase todo para trás, perscrutando os galhos.
— Assim você vai acabar caindo...
O menino se endireitou, e continuaram a andar.
— O que você estava procurando?
— Eu não estava procurando.
Deixaram a praça, atravessaram a rua e foram seguindo em direção a casa.
— Mas e aí, my son? Quais foram as últimas do mistifório?
— Quê?
— O que você aprendeu lá hoje, na aula de religião?
— O que eu aprendi eu não sei: eu sei o que a freira ensinou.
— Boa resposta...
— Eu sei isso.
— E o que a freira ensinou?
— Ah — o menino respondeu, com um gesto de enfado —, ela falou lá sobre anjo...
— Anjo?
Ele então cantou:
— “Os anjos, todos os anjos, os anjos, todos os anjos, louvem a Deus para sempre, amém.”
— Onde você aprendeu essa música? — o menino quis saber.
— Quando eu era menino, a gente a cantava na igreja. Vocês não cantam?
— Essa música?
— Qualquer uma.
O menino disse que sim, com a cabeça.
— Qual é a que vocês cantam?
O menino não respondeu.
— Qual é a música que vocês cantam?
— Ah, Pai, não sei.
— Você não disse que vocês cantam?
— Eles — explicou —, eles cantam.
— Eles quem?
— Os meninos.
— E você não?...
— Não.
— Por quê?
— Ih, Pai, você quer saber de tudo, hem?
— Quero.
— Eu não canto porque eu acho a música feia; é
por isso.
— Mas os outros meninos cantam...
Sacudiu a cabeça.
— E como você faz?
— Como que eu faço o quê?
— Você não canta: o Irmão não se importa?
— Ele não sabe.
— Não sabe?
— Eu finjo, Pai.
— Finge? Como?
— Ê, mas você está chato hoje...
— Eu só quero saber isso: como você finge?
— Com a boca.
— Com a boca?... Agora é que eu não entendi mesmo...
O menino parou:
— É assim, ó; eu vou te mostrar. Olha pra mim...
O menino executou, então, uma mímica, mexendo a boca, franzindo a testa e movimentando a cabeça...
— Viu?
— E você faz assim, lá na missa...
Sacudiu a cabeça.
— E o Irmão não percebe...
— Ele é meio bobo, pai. E, também, eu treinei, né? Eu treinei muitas vezes, no espelho lá de casa.
— Hum...
— Você quer ver?
O menino tornou a parar.
— Eu vou cantar uma música pra você. Presta atenção, hem?
Mexeu de novo, por alguns minutos, em silêncio, com a boca, os olhos, a cabeça, o corpo todo. Então parou.
— Viu?
— Vi.
— Que música é a que eu cantei?
— Ah, agora você me apertou...
— Ô, pai...
— Agora...
— Você conhece ela...
— Conheço?
— Eu vi um dia você assobiando...
— Hum...
— Faz assim: eu vou cantar de novo.
— Não — ele o brecou. — Outra hora você canta. Lá em casa. Senão eles vão achar que nós somos dois doidinhos aqui...
Pegou-lhe a mão e atravessou rápido a rua, na frente de um carro que vinha com velocidade.
Andaram um pedaço em silêncio.
— Mas então? — ele disse. — Voltando aos anjos: o que a freira lá falou sobre eles?
— Foi sobre o anjo da guarda.
— Anjo da guarda? Isso ainda existe?
— Você não tem anjo da guarda, Pai?
— Eu não.
— A freira disse que todo o mundo tem.
— Eu tinha, sabe; mas o meu anjo da guarda andava muito chato, aí eu meti o pé na bunda dele e ele foi louvar a Deus para sempre, amém.
O menino riu.
Andaram mais um pouco.
— Eu queria perguntar uma porção de coisas... — o menino disse, então, num tom de descontentamento.
— Perguntar a quem, meu filho?
— À freira, pai.
— E por que você não perguntou?
— Por quê? Porque uma vez eu perguntei, e aí sabe o que ela disse?
— O quê?
— Ela disse: “Aqui quem faz perguntas sou eu; vocês só respondem.” Ela falou desse jeito.
— Que maravilha. Nem um delegado de polícia se sairia melhor.
— “Aqui quem faz perguntas sou eu.” Aí eu não perguntei mais, né? Eu ia perguntar?
— O que você queria perguntar a ela?
— Ah, uma porção de coisas...
— Por exemplo?
— Por exemplo: asa de anjo é feita de pena igual a asa de passarinho?
— Hum.
— Essa é uma coisa que eu queria perguntar.
— Sei.
— Outra coisa: anjo voa feito passarinho?
— Ah, então era isso... Agora eu entendi...
— Entendeu o quê, Pai?
— Acho que eu vou tirar o meu estilingue da gaveta...
— Estilingue?
Viraram na esquina.
— Bem: quer dizer que você queria saber se anjo voa...
— É.
— Voava. Antigamente eles voavam. No tempo em que os animais falavam.
— Os animais, Pai? Os animais falavam?
— Falavam.
— Feito gente?
— É.
— Quem te contou?
— Eu fiquei sabendo.
— Gato, cachorro, tudo falava?
— Falava.
— E passarinho?
— Passarinho não; passarinho só cantava.
— Por quê?
— Sei lá. É porque era assim.
— E minhoca?
— Minhoca?...
— Minhoca também falava?
— Falava, mas minhoca só falava na língua delas: o minhoquês.
— Minhoquês?
— É.
— Como que é o minhoquês?
— Ê... Já estou quase dando razão à freira...
— Hem, Pai, como que é o minhoquês?
— Meu filho, o minhoquês é só as minhocas que sabiam; ninguém mais.
— Elas também tinham escola?
— Quem sabe?
— E aula de catecismo?
— Ah, isso é certeza. Aula de catecismo é certeza.
— E freira?
— Oh, não; tenhamos piedade das minhocas...
— E anjo? Elas tinham anjo?
— Tinham. Anjo era uma minhoca com asas. Mais tarde ela se transformou na cobra-voadora. Você não ouviu falar em cobra-voadora?
— Não...
— Pois é, cobra-voadora...
O menino ficou pensativo.
— Bom, mas... Você queria saber se anjo voa, não é isso?
— É.
— É como eu disse: voava. Antigamente eles voavam. Mas hoje é tudo por controle-remoto.
— Controle-remoto?
— O anjo é teleguiado, entende? É assim: o sujeito telefona lá para o depósito de anjo.
— Depósito de anjo? Tem isso, Pai?
— Tem.
— É feito depósito de gás?
— É; feito depósito de gás. Lá, no depósito de anjo, lá tem anjo de tudo quanto é tipo. O sujeito então telefona pedindo um anjo assim ou assado.
— Assado?
— É um jeito de dizer; você nunca me ouviu dizendo isso?
— Eu achei que você estava dizendo que o anjo é assado...
— Não; anjo assado é só no restaurante. Uma vez eu comi um, mas não achei bom, não: tem gosto de pena.
— Eco... — o menino disse, fazendo uma careta de nojo.
— Mas aí, aí o sujeito telefona lá para o depósito, e eles pst! apertam uma tecla, e na mesma hora o anjo está na frente de quem pediu.
— É assim? — o menino perguntou, admirado.
— É.
— Legal, hem, Pai?
— É super-rápido.
— Ela sabe disso?
— Ela quem?
— A freira.
— Duvido.
— Eu posso contar pra ela?
— É melhor não contar.
— Então você conta.
— Eu? De freiras e padres eu quero distância, meu filho.
— Então eu vou contar...
— Se você contar, sabe o que ela pode fazer com você?
— O quê?... — O menino perguntou, curioso, olhando para ele.
— Te jogar num caldeirão de água fervente.
— Ah, mas aí, né, aí eu pego o celular e: “Alô, eu quero um anjo-da-guarda!”
Ele riu.
— Aí o anjo vem, me tira do caldeirão, e eu tibum!, jogo a freira lá dentro.
— É isso o que ela está mesmo merecendo...
— Jogo a freira lá dentro; e aí eu quero ver...
Chegaram em casa.
— Sua mãe já está aí...
Ele abriu a porta, mas antes de entrarem, o menino pediu que ele se abaixasse, e disse, baixinho, em seu ouvido:
— Pai, não conta pra Mamãe, não, hem? Eu vou dizer uma coisa, mas é só pra você...
— Diga.
— Sabe o que eu acho?
— Hum...
— Eu acho que anjo existe, mas é só de mentirinha...
— Grande, garoto, grande! — ele disse, passando a mão na cabeça do menino. — Você vai longe...
Tomara que fosse mesmo, e então descobriria, com o tempo, que não era só anjo que existia de mentirinha: eram muitas outras coisas também, a começar do Papai do Céu.
Papai do Céu, ele pensou, fechando a porta: que coisa mais idiota...
Luiz Vilela nasceu em 1942. É um dos maiores contistas da literatura brasileira, autor, entre outros, dos livros de contos Tremor de terra (1967), A cabeça (2002). Seu mais recente livro é o romance Perdição (2011). Vive em Ituiutaba (MG).
Ilustração: José Aguiar