Conto

O que será que se passa na cabeça de um sujeito nessas condições?


André Sant'Anna

Meu nome é Temístocles Jumonji. Eu nasci na localidade de Santos, nos idos de 1966. Mais ou menos. Mas fixei residência aqui em São Paulo há praticamente três décadas. Eu não gosto de negros. A minha mãe é negra e eu sou quase negro, e meu irmão, que cai em pé e corre deitado, é mais pro japonês igual ao meu pai. Por isso é que o meu irmão comeu a Madonna quando ele foi modelo na capa do disco dela. O nome do meu irmão é Aristóteles Jumonji e eu tenho um outro irmão, que eu só conheci depois de grande. Ele tem outra mãe diferente. É o Demóstenes, que eu não sei se ele pegou o sobrenome Jumonji do meu pai também. Eu só o conheci depois. Minha mãe morreu. Eu não sei se eu gosto dela, disso dela ser negra e eu ser quase negro e o Ari ser japonês, todo bonitinho. Japonesinho. Quando ele era pequenininho, as meninas do teatro ficavam com ele no colo, alisando ele. Eu sou recalcado. Lá lá lão, recalcado anda de caminhão. Lá lá lóvel, recalcado anda de automóvel. Lá lá leite, recalcado anda de skate. Eu sou esquizofrênico. Sabe? Eu sou esquizofrênico. Como vai o seu avô? Estou com muitas saudades do seu avô. O Demóstenes não tem nada de negro. A mãe dele não era negra e o meu pai é japonês. A minha mãe era negra, era neguinha. Não gosto de neguinha. Isso é uma das razões de eu ser esquizofrênico, louco, uma loucura mais parecida com a do George Harrison.

O Ari, o meu irmão, o Aristóteles, foi campeão mundial de skate e apareceu na revista junto com o Tony Alva, os dois do mesmo nível, o Ari e o Tony Alva.

Quando eu morava em Ubatuba, naquele barraco que a minha mãe neguinha morava, eu e o Ari tínhamos um monte de pôsteres do Tony Alva na parede e figuras adesivas fosforescentes autocolantes do Tony Alva coladas no skate da gente. Agora o Ari apareceu na revista de skate junto com o Tony Alva, os dois abraçados. Os dois do mesmo nível. Na revista americana. Nos Estados Unidos. E eu aqui, nessa loucura do George Harrison, sem nada. Eu não tenho nada. O Ari lá no pôster da revista com o Tony Alva e eu não tenho nada. O Ari já tem 40 anos. Ele não é mais um japonesinho. Ele cresceu, é musculoso, é modelo de foto de moda pra skatista. O Ari foi campeão mundial de skate. Eu tenho uns 45.

Eu já fui campeão brasileiro freestyle. Depois foi o Ari que começou a ganhar todos os campeonatos — rampa, freestyle, tudo. O Ari cresceu, sabe? Sua irmã também deve ter crescido. O Ari está preso em Los Angeles. Eu não tenho nada e ainda estou devendo uma pedra para o meu corpo. Ou então eu tenho que morrer e ir para o Japão. Ou então eu tenho que tomar um TaffMan E, porque eu estou ficando brocha com o remédio que tenho que tomar e, se paro de tomar o remédio, o meu pai me bota pra fora e eu tenho que trocar de emprego toda hora, dar aula de inglês, trabalhar na lavanderia, ser copiloto de helicóptero. Esta camisa que estou usando é feita especialmente para copilotos de helicópteros. Eu sou um copiloto de helicópteros. É melhor ser louco do que ser brocha. Se o meu pai me bota pra fora, eu não tomo mais remédio e sou acometido por surtos psicóticos e vou parar na clínica, hospital público cheio de mendigo. Depois, acabo aqui jogado e vou ficando cada vez mais mendigo e a minha perna esquerda está em péssimas condições e eu não consigo mais andar de skate, nem lutar kung-fu, nem dançar igual ao John Travolta e nem jogar basketball, e nem trabalhar no McDonald’s, com o cabelo verde debaixo da touca do McDonald’s e lavar o chão do McDonald’s, na Avenida Paulista, com o esfregão, dançando igualzinho ao Gene Kelly na poça de água com detergente, de um jeito que dava até para fazer um comercial do McDonald’s, porque eu ganhei todos os concursos de dança nas discotecas, em Ubatuba, nas Brincadeiras do TCC, em Taubaté, porque eu sempre dancei muito bem mesmo e eu andava de skate e eu lutava kung-fu. Eu sou do Bronx.

Fiquei em primeiro no campeonato, em Guaratinguetá, e ganhei também em Pinda. Freestyle. Mas eu tive que abandonar o ramo do skate e agora estou mergulhado na atividade, na produção, no ramo de estofamento para mísseis. Eu tive que parar por causa da minha perna. Veja, note bem, veja como está a minha perna esquerda, o sangue. E o Ari é o campeão mundial, junto com o Tony Alva, e é modelo de comerciais e comeu a Madonna. Eu podia ser também, quando eu fui para os Estados Unidos, do you understand me? Mas a perna... Olha só o sangue na minha perna. O sangue saindo.

O Ari cresceu muito. Nos Estados Unidos, ele foi para um lado ser campeão mundial de skate e modelo com o Tony Alva e eu fui para o outro lado, para a NASA. E o meu pai foi para um terceiro lado com aquela mulher, aquela latina. Meu pai gosta de neguinha, de latina. Ele se mistura com neguinha e quem nasce sou eu, japonês e meio preto, com esse cabelo, que já foi verde, quando eu era meio punk, New Yotk Dolls, Devo, Madame Satã, Inocentes, ba ba ba, ba ba ba. O cabelo do Ari é lisinho, é cabelo de japonês. O Ari cresceu muito. Ele ficou preso e ficou forte de tanto fazer ginástica na prisão. A prisão é um lugar bastante apropriado para a prática da musculação, objetivando o aperfeiçoamento físico. Mente sã em corpo são. O Ari virou modelo, sem camisa, andando de skate em New York City. Como vai a sua irmã? Ela também cresceu? Vou dar uma prancha de bodyboard de presente pra ela. Ela ainda é surfista? Ela já foi campeã mundial de bodyboard? Mas antes eu tenho que comer carne, tenho que tomar TaffMan E, porque eu estou ficando brocha. Ontem, de noite, na academia, entraram dois soviéticos e jogaram cocaína, maconha e crack no meu lado esquerdo. Jogaram crack na minha cara. Olha só como ficou o meu lado esquerdo. O lado esquerdo da águia. O lado esquerdo do samurai. O sangue saindo da minha perna esquerda. Eram dois soviéticos. Os mesmos que explodiram aquela nave que explodiu na NASA, em Cabo Canaveral. Tinha um astronauta japonês no ônibus espacial. Foi por isso que os soviéticos agora querem acabar com o meu lado esquerdo, o meu joelho, a minha perna esquerda. Porque eu sou japonês. Porque eu sou o samurai. Sabe? Com a perna assim, eu não vou poder ser campeão mundial de skate e não vou sair no pôster com o Tony Alva. Eu amo a Sabine, mas ela ama o Rei da Inglaterra, que antes, na Flórida, era o meu melhor amigo. E eu estou brocha por causa do remédio para esquizofrênicos que o Doutor Luís me dá quando eu vou lá na clínica dos mendigos. Mas quando eu não estou sendo campeão brasileiro de skate, nem jogando basketball no Chicago Bulls, ou na Seleção Ubatubense de Basquete, ou dançando igual ao John Travolta, ganhando todos os concursos de dança nas Brincadeiras do TCC, em Taubaté, ou sendo um grande ator dos palcos brasileiros, com domínio absoluto sobre todos os músculos do meu corpo, preciso nos movimentos, trabalhando o personagem como se meu corpo fosse uma marionete manipulada pelo meu cérebro de ator, um grande ator, o melhor, eu sou mendigo. O meu primo me viu na rua, eu utilizando trajes apropriados para um mendigo, e meu primo chorou quando me viu. Você também está com vontade de chorar?

Foi lá nos Estados Unidos que a NASA e o Rei da Inglaterra me pegaram e fizeram isso com o meu lado esquerdo, a minha perna esquerda. Flórida, Califórnia, Ohio, New York e adjacências. São experiências terríveis com o lado esquerdo da pessoa. O lado esquerdo da águia. Para enfrentar essas terríveis atrocidades é necessário usar os trajes do lado esquerdo da águia: um conjunto completo de roupa indicada para as práticas do mergulho livre e do surf em temperaturas abaixo da temperatura ideal, além de óculos escuros no formato pentagonal e dois facões pontiagudos falsos feitos especialmente para a prática do Maculelê, que o samurai pode obter facilmente em qualquer academia preparada especialmente para a prática da capoeira, esse esporte afro-brasileiro praticado por negros musculosos. Onde fica a farmácia? É chegado o momento. Eu não sou o estranho no ninho. Você pensou que eu fosse o estranho no ninho?

Tente me compreender. Minha estratégia é simples. Primeiramente, preciso dar cabo de minha própria vida. Para isso, basta que eu utilize qualquer veneno indicado especialmente para aniquilar ratos e camundongos. É possível obter produtos dessa espécie em qualquer farmácia ou drogaria do ramo. Mas não se preocupe. O samurai, que sou eu, o lado esquerdo da águia, que sou eu inspirado no consumo de plantas alucinógenas indicadas especialmente por Carlos Castañeda, no deserto de Sonora, México, o samurai será transferido para o Japão, onde vou recuperar a minha espada — é isso, preciso recuperar a minha espada para derrotar a NASA e vingar o japonês do ônibus espacial. No Japão, serei operado pelo meu tio, que é totalmente japonês, em procedimento cirúrgico de extrema delicadeza, onde minha perna esquerda será recomposta e será preparada para o dia da ressurreição com peças feitas especialmente para samurais cibernéticos, tipo Homem de 6 Milhões de Dólares. É quando o samurai, no caso eu, o lado esquerdo da águia, será conduzido em sua glória, pela estrada de Narayama, até o deserto de Sonora, México, América do Norte, Terra, Sistema Solar, Universo, para iniciar os procedimentos invasivos contra a grande potência do Rei da Inglaterra, que tomou do samurai, no caso eu, sua musa amada, a também britânica Sabine, cujos cabelos possuem o olor do abricó. Eu samurai, ex-Abricó, ex-Tecnicolor, seguido por Ovo Frito, Doutor Florzinha — o Doutor Florzinha é italiano e italiano quando fica nervoso chuta o próprio carro — o Capacete, o Kid Pornô, o Cruz Vermelha, pegarei o rumo do Reino de Mefistófeles, a espada do samurai em punho. Foi o Rei da Inglaterra, o soviético macrobiótico, biscoitinho, biscoitinho, e a NASA, foram eles que tomaram a espada do samurai. Mas quando o samurai, o lado esquerdo da águia, com a espada do samurai em punho, adentrar o reino do Rei da Inglaterra, será tarde demais para as hordas infernais da América do Norte, tarde demais para a NASA.

Sete horas e quatorze minutos, Flórida, Cabo Canaveral: BUM! Onze horas e vinte e cinco minutos, Califórnia, reduto do Rei da Inglaterra: BUM! Quatorze horas em ponto, Texas: BUM! Dezenove horas e quatro minutos, Ohio: BUM! Vinte e três horas e cinquenta e nove minutos, quase meia-noite, New York City e adjacências: BUM! Não vai sobrar nem o Aristóteles e nem o Tony Alva. Eu amo o meu irmãozinho, eu amava a minha mãe, mas eu não gostava dela, que era neguinha e eu ia nascer totalmente neguinho se o meu pai não fosse japonês.

É preciso haver uma hierarquia. É preciso saber separar o joio do trigo, os nobres dos ignóbeis.

Por um lado, eu: o samurai, o lado esquerdo da águia, um grande ator com domínio absoluto sobre o próprio corpo, um grande bailarino que dança na chuva, de cabelo verde, com a perfeição de Gene Kelly, capaz de reproduzir nos mínimos detalhes todos os passos coreográficos de John Travolta em Os embalos de sábado à noite, que domina o estilo da Serpente na prática milenar do kung-fu, campeão brasileiro de skate freestyle, um grande ator capaz de entreter, sozinho, apenas com a ajuda do próprio corpo, plateias de todos os extratos sociais da população, através de um método desenvolvido pelo próprio samurai, no qual o ator não se envolve emocionalmente com as emoções do personagem, mas manipula essas emoções como se o personagem fosse uma marionete, domínio absoluto sobre os músculos, sobre a entonação vocal, sobre as emoções em si desse personagem, um grande skatista da geração pioneira na prática do skateboard em solo brasileiro, composta pelo Yura, pelo Bola 7, o Porquê, o Marcio Mad Rats e outros mais, desde os idos da saudosa Wave Park, praticando o freestyle na rua Pandiá Calógeras, na Liberdade, o renomado bairro japonês de São Paulo. Eu sou um japonês que atravessou os Estados Unidos, coast to coast, carregando a espada do samurai e meu skateboard, até ser detido pela NASA, até ser sacrificado em nome do american way of life.

De lá pra cá, diariamente, praticamente todos os dias, os soviéticos e a NASA invadem o espaço da águia, o lado esquerdo da águia, e aplicam drogas de potência descomunal sobre o meu lado esquerdo. Drogas farmacológicas e drogas indicadas para mendigos, como a pedra que transfigura por completo o rosto meio japonês, meio neguinho, do samurai, inutiliza seu joelho esquerdo para a prática do freestyle e/ou do streetstyle sobre o skateboard e o coloca à mercê dos ignóbeis, nesta rua, coberta de lixo e sangue. O sangue que corre sobre a perna esquerda do samurai, o lado esquerdo da águia. Me sinto como um camundongo de cauda comprida, numa sala cheia de cadeiras de balanço.

Por outro lado, os ignóbeis: o povo, humanos de baixa qualidade estética, estética no sentido filosófico da palavra, a classe baixa alta composta de neguinhos sem qualquer consistência intelectual, os mesmos que crucificaram o Cristo, os mesmos que tornaram possíveis as trajetórias sanguinárias de Adolf Hitler, Joseph Stalin, Mao Tsé Tung, General Custer, dispostos a seguir qualquer regra sem fundamento intelectual ou fundamento ético, ausência de fundamentos estéticos, ignóbeis adoradores do dinheiro barato, das merrecas, da violência medieval primitiva.

Esses neguinhos que vêm me cutucar com o porrete, ignóbeis teleguiados pelos controladores de cérebros do mercado do dinheiro. O dinheiro que é a manifestação física e especulativa de Satã. Eu detesto dinheiro!
Esses adoradores do Cristo errado, que só falam em dinheiro e dinheiro não serve pra nada. Dinheiro serve só para comprar pedra, é um mal necessário, mas é principalmente um mal. O Cristo disse que não era para trabalhar, não era para juntar bens materiais, pensar num futuro material, Olhai os Lírios do Campo, ba ba ba, ba ba ba. O Cristo disse que era para vinde a mim, vinde a ele, ao Cristo, as criancinhas, porque delas é o Reino dos Céus. E os ignóbeis vêm com o porrete e agridem fisicamente, covardemente, as criancinhas cracudas da Cracolândia, que não têm pai, quer dizer, têm, mas era melhor que não tivessem, porque os pais delas são todos monstros abomináveis criados pela sociedade do dinheiro. As criancinhas do Cristo verdadeiro já estão todas mortas, criancinhas mortas pelo dinheiro, pelos mercados futuros, já estão todas cagadas pela falta de lugar onde possam praticar suas necessidades fisiológicas. Elas são caçadas, aqui em volta, dia e noite, por uns neguinhos ignóbeis, que nunca foram grandes atores com domínio absoluto sobre cada músculo de seus corpos, nunca jogaram basketball ou foram campeões brasileiros freestyle, ba ba ba, ba ba ba. Essas criancinhas cracudas vão acabar se voltando contra a sociedade que as tornou cracudas e que as deseja mortas, com muita dor, muito sangue. Óbvio até para um esquizofrênico cracudo.

Somos todos personagens medievais primitivos de uma tela do renomado pintor holandês Hieronymus Bosch. Eu sou um personagem morto, aquele capetinha com a cara toda retorcida no canto da tela, e eles, os ignóbeis medievais, já estão chegando junto, com aqueles porretes. Ui ui ui, eles querem bater em mim, eles querem me expulsar da área, os ignóbeis particulares e públicos. Ui ui ui, eles estão defendendo as propriedades das pessoas de bem. Ui ui ui, ai, que mêda!?

André Sant’Anna é escritor, músico, roteirista de televisão e redator publicitário. Autor da trilogia Amor (1998), Sexo e Amizade (1999), O paraíso é bem bacana (2006) e Inverdades (2009). Vive em São Paulo (SP).