Conto

Sábado à noite


Thiago Tizzot

Esfregava as mãos e sentia a pele como se estivesse solta, folgada demais para seus ossos; parou de fazer isso. Não gostava de pensar que o tempo tinha passado mais rápido do que suas memórias. Uma mulher o encarava, não era jovem, mas bonita com seu cabelo cacheado e o lábio demarcado pelo batom vermelho. Instintivamente olhou para o seu dedo, a aliança não estava mais lá. Outra coisa que tinha perdido pelo caminho. A mulher insistia com o olhar e ele tentou descobrir por quê. Não sabia se por desconfiança ou se ela gostaria que ele retribuísse. Seja qual fosse a razão o desagradava. Apertou o botão que indicava que o ônibus deveria parar no próximo ponto.

A porta se abriu e desceu os dois degraus largos, o sol bateu em seu rosto, os olhos estranharam a claridade,
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não conseguia lembrar a última vez que sentira aquilo. Jamais tinha reparado naquela coisa tão simples, estranhar a claridade, não durava mais que um instante, tentou lembrar de todas as coisas que não reparara ao longo da vida. O vento batendo no rosto, o barulho da cidade, caminhar olhando para o chão sem se preocupar com nada. Agora tudo era diferente. Depois de tantos anos, era como se fosse a primeira vez. Passou a sentir uma aflição, não gostava daquilo. Pensou que seria bom, que aproveitaria cada momento. Mas sentia falta do silêncio, da rotina, do verde claro da tinta gasta das paredes.

Passou em frente a uma lanchonete, logo na entrada estava um daqueles carrinhos coloridos de picolé. Lembrou-se de que há muito não sabia o que era tomar um sorvete. Deslizou a porta do carrinho, esticou a mão para pegar o picolé e sentiu o frio envolver seus dedos. Retirou a mão e colocou de novo. Era uma sensação estranha, na sua cabeça sabia que era uma coisa comum, ainda assim ficou maravilhado. Foi até o caixa, a moça atendeu com um sorriso, as unhas pintadas de um laranja gritante entregavam o troco. No balcão um sujeito bebia café preto, tinha um bigode farto e o fez lembrar daquelas fotos de pessoas que foram torturadas pela ditadura. Não soube por que pensou isso. O sujeito olhou bem para ele.

— Você não é aquele cara? Vi sua foto no jornal.

— Desculpe amigo, você deve estar me confundindo.

O sujeito deu de ombros e voltou as atenções para o café. Mas ele sabia que era o cara do jornal, sabia que um repórter tinha tirado sua foto quando estava saindo. Sabia que tinha recusado entrevistas e aparições em programas de TV. Não queria que vissem sua cara, nem mesmo seus amigos e família. Já tinha perdido todos eles e a ideia de perdê-los de novo, ou não recuperá-los, era assustadora demais. Preferia que as coisas permanecessem como estavam. Pelo menos a maioria estava feliz. Pagou pelo picolé e seguiu pela rua, ainda faltava um bom pedaço. Tinha saltado um pouco antes do que esperava, mas o olhar da mulher realmente o perturbara. Não tinha dúvidas de que ela não pensara nada de mais, que não o estava julgando e condenando, mas velhos hábitos são difíceis de esquecer. Imaginou se algum dia poderia ver as pessoas como antes, se conseguiria aprender de novo a conviver fora.

Um carrinho de bebê passou a seu lado, uma menina, talvez a melhor forma de encarar aquilo fosse como uma criança vê a vida. Cada pequena coisa é uma novidade, é preciso até mesmo aprender a respirar. Era o que ele precisava fazer, teria que começar a vida de novo. Até ali, suas experiências, sensações e sentidos foram levados, apagados pelos anos que passou naquele lugar onde a vida para e o tempo, lá fora, anda mais rápido. Muito mais rápido.

O sinal abriu e os carros arrancaram com impaciência, ficou na calçada de pedras brancas e negras. Virou sua cabeça para o alto e observou os prédios, reparou em uma janela. Era grande, um quadrado imenso de vidro cercado por concreto sujo. Seu antigo trabalho. Seria mesmo? Não tinha certeza. Lembrou-se de que costumava ficar na janela, admirando as pessoas lá em baixo na rua vivendo suas vidas. Gostava de ser um observador. Essa lembrança tomou sua mente como as águas do mar tomam a areia na maré alta, lenta e continuamente até alcançarem a plenitude. Foi uma sensação reconfortante. Sua vida antiga.

Decidiu ir até o prédio, quem sabe estando na portaria outras coisas não surgiriam. Atravessou apressado a rua e subiu a escada de poucos degraus, olhou fixamente para o mármore branco no chão, nada. Abriu a porta, um grande painel de placas de plástico indicava as empresas que ficavam ali. Leu cada uma delas, foi inútil. Palavras que nada significavam para ele. Seguiu até o balcão da recepcionista, a moça loira era muito jovem para estar ali quando ele trabalhava, se é que este era o prédio certo. Desistiu.

De repente, o dia ficou mais escuro, no céu uma enorme nuvem negra começou sua manobra para bloquear o sol. Uma baita chuva se aproximava, decidiu apressar o passo, o café em que tinha combinado o encontro ainda estava a algumas quadras.

Seria a primeira vez que conversaria com alguém depois que saiu. Claro que já tinha trocado palavras com algumas pessoas, mas conversar mesmo ainda não. Pensou em ligar para o seu pai, contudo a última notícia que tinha tido era que o pai estava internado em um asilo, a cabeça ruim e o coração fraco. Não, seria melhor para seu pai, seria melhor para ele se as coisas continuassem assim. Lembrava-se da decepção nos olhos do velho quando se viram pela última vez. Já faz tempo. Além do mais o velho nunca iria compreender o que aconteceu, nem mesmo ele sabia direito o que tinha lhe acontecido. Só sabia que o tempo correra, por Deus, como correra.

Parou em uma esquina, não tinha certeza se a rua era aquela mesmo. Tudo estava tão diferente. Perguntou para um taxista se o endereço era ali mesmo, o sujeito confirmou com um aceno de cabeça, sem muita vontade. Mascava um palito de dente e nas mãos levava um daqueles jornais populares, com manchetes sobre assassinatos e fotos de mulheres de biquíni.

A galeria ficava no meio da quadra, paredes precisando de uma mão de tinta, lojas decadentes e piso sujo. Ainda assim muitas pessoas passavam por ali. Sentiu uma sensação estranha, talvez alguma memória, talvez frequentasse o local antes, mas não conseguia distinguir o que poderia ser. Seguia com passos firmes.

O café era pequeno e fumacento, não mais que um corredor onde estavam cinco mesas enfileiradas. No fundo um balcão de madeira e alguns doces expostos. Tinha um aspecto de sujo, apesar de não o ser.

Na mesa próxima do balcão estava sentado um homem de cabelos acinzentados e olhar sereno. Tomava um café e a sua frente estava um prato com meio pedaço de torta de maçã. Aproximou sem muita certeza, ficou surpreso por aquilo se revelar uma tarefa extremamente difícil. Há muito sempre alguém lhe dizia o que deveria fazer, como e em quanto tempo. Não ter uma ordem, ter que decidir quais ações deveria tomar era algo que ele não estava mais acostumado. Aquele simpático senhor poderia não ser a pessoa que o estava esperando. Não tinha ninguém ali para lhe dizer o que fazer. Um súbito pânico o dominou e se não fosse o senhor acenar para que ele se sentasse, talvez tivesse saído correndo dali como um louco. Será que teria perdido a sanidade? Achava que isso era a única coisa que tinha conseguido manter.

— Quando recebi a carta não acreditei em sua história — disse o senhor logo depois que ele sentou.

— Desculpe — disse sem saber por quê.

O senhor o olhou por um instante.

— Rapaz, é você mesmo — finalmente falou, — vi sua foto no jornal. O país inteiro acompanhou sua história. Se eu contasse para o pessoal lá do jornal que estou conversando com você agora, ficariam todos eriçados.

— Por favor, não fale nada para ninguém sobre nosso encontro.

— Fique tranquilo — o senhor sorriu —, normalmente já não sou de muita conversa, antissocial, diriam alguns.

Os dois homens ficaram em silêncio. Quando o silêncio começava a incomodar a moça do balcão perguntou se ele gostaria de alguma coisa. Ele pediu um café.

— Desculpe perguntar, mas como conseguiu?

— O quê?

— Aguentar todo esse tempo. Imaginei-me em sua situação e não sei como faria — o senhor garfou mais um pedaço da torta — sabendo que era inocente. 28 anos.

A moça trouxe o café e o encarou por um segundo, ele desviou o olhar e agradeceu.

— O começo foi o pior, sentia muita raiva, não queria acreditar, tentava de todas as formas lutar contra aquilo. Mas o tempo se encarregou de me conformar e descobri que o único jeito de sobreviver era encontrando um objetivo. Alguma coisa que afastasse a ideia de tirar minha própria vida — ele bebeu um gole de café —, foi aí que suas palavras cruzadas surgiram.

Não foi preciso pedir por uma explicação, a expressão em seu rosto era mais do que suficiente.

— Exatamente — pela primeira vez ele sorriu —, a penitenciária recebe a assinatura do jornal e um dia, quando eu limpava o chão da biblioteca, o jornal estava aberto em cima da mesa. A cruzada estava ali, mentalmente fiz a um na horizontal, depois fiz a quatro na vertical, quando percebi estava sentado, com o lápis na mão e terminando. Claro que não consegui fechar todas as palavras — o autor agradeceu o elogio —, e o senhor não imagina como é difícil descobrir a palavra certa sem nenhum tipo de ajuda. Mas era do que eu precisava, passava todo meu tempo livre procurando pelas palavras, os jornais não paravam de chegar, eu sempre tinha um novo desafio. É por isso que ainda estou aqui, graças às suas cruzadas pude ver o dia em que o verdadeiro assassino foi preso e ganhei minha liberdade.

— Eu... eu não sei o que dizer — o senhor estava realmente atordoado com a história, jamais pensou que suas cruzadas pudessem fazer tanta diferença em uma vida.

— O senhor não precisa dizer nada, sou eu que tenho que lhe dizer. Obrigado.

Ele estendeu a mão por sobre a mesa, trocaram um breve aperto, ele terminou seu café e foi embora.

Thiago Tizzot é autor dos livros O segredo da guerra e Ira dos dragões e outros contos. Editor da revista de literatura Arte e Letra: Estórias. Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Theo Szczepanski