Capa | A narrativa gráfica curitibana

Desde o começo do século XX, várias gerações de artistas vêm ampliando o olhar sobre a cidade, seja nas publicações culturais, nos romances gráficos ou em novos movimentos, como o dos “croquizeiros” urbanos


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Trabalho de Poty Lazzarotto presente na mostra “Poty de todos nós” que entrou em cartaz no Museu Oscar Niemeyer em 2012.


A história das publicações culturais de Curitiba é relativamente conhecida. Títulos icônicos, como Joaquim (1946-1948) e Nicolau (1987- 1996) foram (e são) objetos de estudo. Mas a revista criada por Dalton Trevisan e o jornal editado por Wilson Bueno são apenas dois exemplos de uma tradição que remonta ao século XX. 

Em 2014, o arquiteto e pesquisador Key Imaguire Jr., criador da Gibiteca de Curitiba (leia mais nas páginas 28 e 29), fez uma lista em que dimensionava a diversidade de publicações curitibanas. Entre os muitos periódicos citados, estavam iniciativas do início do século XIX, como Pallium (1898- 1900), e experiências mais próximas de nosso tempo, como Forma (1966), Leite Quente (1989-1992), Raposa (1981), Fundação (1981), Polo Cultural (1978) e Medusa & Oroboro (1998-2000, 2004- 2006). No entanto, essa narrativa não pode ser contada sem que se fale dos inúmeros artistas que ao longo de um século e meio fizeram da cidade uma referência “gráfica”. 

O jornalista e cronista Dante Mendonça, um dos primeiros do Brasil na publicação de charges coloridas em capas de jornais diários (O Estado do Paraná), recorre à História para explicar a pujança de artistas da cidade. “Curitiba sempre foi um centro de excelência em Para o cronista Dante Mendonça, “Curitiba sempre foi um centro de excelência em artes gráficas em função das correntes migratórias”. artes gráficas em função das correntes migratórias. Os alemães, os poloneses, os russos, os ucranianos — todo aquele povo do Leste Europeu — eram especialistas em artes gráficas”, diz o autor do livro Curitiba, melhores defeitos, piores qualidades. 

O ano de 1854 é o marco zero oficial dessa história, data da fundação do jornal Dezenove de Dezembro, primeiro periódico da capital do Paraná, fundado por Cândido Martins Lopes. Mas outras iniciativas foram apontadas pelo escritor Newton Carneiro no livro  O Paraná e a caricatura, de 1975. Entre outras questões, o pesquisador lançou a polêmica de que o humor gráfico brasileiro nasceu por obra de um curitibano conhecido como “João Pedro, o Mulato”, que pintou “aquarelas satíricas” entre 1807 e 1819. No entanto, oficialmente a primeira caricatura brasileira foi publicada no Jornal do Commercio, em 1837, por Manoel de Araújo Porto- -Alegre. “Concordo plenamente com a teoria do Newton Carneiro de que as primeiras charges do Brasil foram feitas no Paraná”, declara Dante Mendonça. 

Já no início do século XX, Curitiba viveu uma agitação editorial com o lançamento das revistas O Olho da Rua e A Carga, em 1907, época em que despontou Mário de Barros. Em 1913, apareceria A Bomba, ostentando um letreiramento ao estilo art nouveau. O anticlericalismo era uma tônica de muitas publicações da época. 

Até os anos 1950, a grande celebridade curitibana no humor gráfico foi Alceu Chichorro. Ele e seus personagens Chico Fumaça e Dona Marcolina permanecem no imaginário paranaense. A partir dos trabalhos de Chichorro, as pesquisadores Aparecida Bahls e Mariane Buso buscaram outros cartunistas cujas histórias são narradas no livro Factos da actualidade: charges e caricaturas em Curitiba, 1900-1950 (2009).
     
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O mito Poty
Aos 18 anos, em 1938, o artista que ficaria famoso pelos murais espalhados por Curitiba, publicou uma HQ no jornal Diário da Tarde. Quase uma década depois, daria início a uma prolífica parceria com Dalton Trevisan na revista Joaquim e em capas de livros do contista. 

Os trabalhos editorias se estenderiam a outros autores, como João Guimarães Rosa (Grande sertão: veredas, Corpo de baile e Sagarana). Para a editora José Olympio, o mais famoso muralista do Paraná ilustrou também Capitães da areia (Jorge Amado), O quinze (Rachel de Queiroz), Cobra Norato e outros poemas (Raul Bopp), Chapadão do bugre (Mário Palmério), entre muitos outros.

Para o arquiteto e fundador da Gibiteca da cidade, Key Imaguire Jr, “o grafismo de Poty Lazzarotto se insere na estética dos anos 1960 com perfeição. Os movimentos artísticos evoluíram e a qualidade do desenho do Poty se manteve em sintonia com as novas formulações”. Em Poty ilustrador, publicado em 1988, Antônio Houaiss vai mais longe e escreve que “nunca a fusão verbo-ícone atinge tão intrínseca adequação [quanto na obra de Poty Lazzarotto]”. 

No caso de Dalton Trevisan, a parceria, mesmo depois de 18 anos da morte do desenhista, ainda rende. As coletânea de contos do escritor seguem ilustradas por desenhos do acervo de Poty. 

“O traço de união mais característico entre o artista e o escritor é de ordem moral: a solidão”, observa um artigo de Sônia Gutierrez, pesquisadora vinculada à Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Datado de 2001, o texto faz uma outra reflexão entre os dois criadores — a “bricolage constante”. Afinal, tanto Poty quanto Dalton “fazem uso da mesma imagem em vários procedimentos, em dimensões e em contextos diferentes”. 


Geração Nicolau 
Da geração de criadores surgida nos anos 1970, o cartunista Luiz Antonio Solda enveredou pelo humor ao combinar traços e letras. Além de escrever livros, como Almanaque do professor Thimpor (humor) e Kamikase do espanto (poesia), Solda inventou a LETRASET — Academia Paranaense de Letraset —, jogo de palavras com letras impressas por decalque (letraset) que satiriza o artificialismo de algumas confrarias de literatos. 

Para o artista, as agências de publicidade, nas décadas de 1970 e 1980, tiveram influência nas artes gráficas da cidade. “A convivência com Leminski numa agência me inspirou a fazer desenhos mais poéticos. Por outro lado, eu o influenciei a fazer uma poesia mais engraçada.” 

“Nunca coisa alguma aqui nesta ‘nesseCIDADE’ foi fácil!”, diagnostica Rogério Dias, outro artista emblemático de Curitiba, conhecido pelas suas telas com pássaros. Protagonista em publicações culturais nas últimas décadas, Dias foi o autor da primeira capa do jornal Nicolau. A famosa ilustração, segundo o artista, foi escolhida por Jaques Brand, poeta que esteve envolvido na concepção do periódico.


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O arquiteto Key Imaguire foi o idealizador da Gibiteca de Curitiba, em 1982. Ainda hoje ela é uma referência entre os fãs de quadrinhos no Brasil.

“Levei alguns desenhos para o meu amigo Wilson Bueno, jornalista [editor de Nicolau]. Ele me agradeceu pela capa que fiz para seu [livro] Bolero´s Bar e elogiou minhas ilustrações publicadas no jornal Correio de Notícias. Depois, pediu ao Jaques Brand que escolhesse a capa para o Nicolau. Num passar de olhos, ele escolheu!”. 

Na opinião de Joba Tridente, diagramador do periódico entre a 34ª e a 55ª edição, “o Nicolau era um jornal artesanal”. Além de desenhar cada letra do título da publicação e de abusar de recursos de fotocópias, era comum que o editor de arte usasse expedientes como riscar, rasgar, raspar e até atear fogo nas páginas para alcançar o efeito desejado.J

á o artista gráfico e publicitário Luiz Carlos Rettamozo diz que não é possível falar de artes e imprensa em Curitiba sem evocar o nome do editor Reynaldo Jardim. Responsável por suplementos culturais no Diário do Paraná e, depois, no Correio de Notícias, Jardim trazia no currículo a revolução gráfica do Jornal do Brasil, ocorrida nos anos 1950, a direção da revista Senhor e a criação do alternativo O Sol

“Certa vez o Oscar Niemeyer colaborou com o Diário do Paraná . O Jardim então pegou o texto do Niemeyer e me colocou para ilustrar. Ficamos os três fazendo o jornal durante a semana, enquanto o arquiteto ficou em Curitiba. Depois de o material ser publicado, Niemeyer levou um pacote de exemplares para distribuir na Argentina, sua próxima parada”, recorda Rettamozzo.


                                                                                                  Ilustração: Fabiano Vianna
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Crônica
Mais que publicações culturais e ação individual de artistas, as artes gráficas da cidade se renovam por “movimentos”. Jornais e revistas, hoje, são apenas opções dentro de uma gama de plataformas disponíveis aos desenhistas. 

Espécie de crônica em forma de desenho, o “Croqui Urbano” (em inglês, “Urban Sketch”) tem ganhado força em Curitiba nos últimos anos. A cidade foi a primeira do Brasil a sediar um encontro de “croquizeiros”. A atividade, basicamente, consiste em reunir artistas para desenhar pontos pré-escolhidos da cidade. 

Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e precursor da atividade, José Marconi considera que “a maior contribuição [dessa forma de expressão] foi a de multiplicar a iconografia curitibana. O croqui urbano pretende desenhar algo além do cartão postal, como as idiossincrasias e o lado avesso da cidade”, diz o fundador do grupo “Croquis Urbanos Curitiba” e, mais recentemente, dos “Desenhadores de Rua”. Para ele, até a carga de tensão das ruas condiciona o desenho. Natural da Paraíba, Marconi diz que os croquis lhe serviram de pretexto para conhecer Curitiba. A condição de migrante foi a mesma que havia levado o catalão Gabriel Campanario a começar o movimento “Urban Sketch” em Seattle.

“Para mim o sketch é como a crônica, porque os dois são bastante próximos do ‘narrador’”, opina Fabiano Vianna, arquiteto e também fundador do “Urban Sketchers Curitiba”. O artista costuma ler cronistas como Rubem Braga e Luís Henrique Pellanda para inspirar croquis nos quais desenha “cenas possíveis” e estabelece paralelos com a memória.

Romance
O romance gráfico é outra plataforma em que os artistas curitibanos têm se sobressaído. Há uma safra de autores publicando nesse formato. “Em Curitiba, há bons profissionais [de narrativas gráficas] publicando em diferentes formas e plataformas de financiamento”, avalia André Caliman, autor da graphic novel Revolta!. Para ele, “os ilustradores da cidade estão muito atualizados com o momento da produção editorial”. Vencedor de um prêmio HQMIX em 2008, Caliman destaca o trabalho feito pelo estúdio Dogzilla (“um divisor de águas”), por André Ducci, Leonardo Melo, José Aguiar e pelos grupos Lobo- Limão e Manjericão. 

Na opinião de DW Ribatski, indicado em 2014 ao Prêmio Jabuti na categoria Ilustração pela HQ Campo em branco, a ilustração editorial se beneficia com “a iniciativa, há muitos anos, da [loja] Itiban, da Gibiteca de Curitiba, do[ escritório de arte] Mucha Tinta, do [selo/loja] Candyland Comics e, mais recentemente, do [estúdio de impressão] Selva Press”. Para DW, ainda é limitado o espaço dedicado às artes gráficas na imprensa local. Para se justificar, despeja sobre o repórter o nome de 22 jovens artistas curitibanos, todos de alto nível técnico. 

Outro artista bastante atuante é José Aguiar. Depois de uma temporada na Alemanha, em 2006, ele diz que se “descobriu” como brasileiro e curitibano. Isso mudou seu trabalho. “Sem forçar o sotaque, sem cair num ‘ufanismo’, gosto de apresentar elementos de cena que revelem a cidade, fugindo de seu lado turístico”, observa. 

Em tempos de convergência de tecnologias e linguagens, o quadrinista Robson Vilalba produz peças jornalísticas gráficas para o jornal Gazeta do Povo. Apesar de publicar em diversas plataformas de mídia, ele reconhece: “Ainda prefiro o livro como suporte para contar minhas histórias”. Vilalba foi o ganhador, em 2014, do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. A série foi transformada no livro-reportagem em quadrinhos Notas de um tempo silenciado.

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