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A longevidade da narrativa ficcional em prosa

Considerado por muitos como o mais completo, complexo e importante gênero literário, o romance chega ao século XXI com aceitação do público e sobrevive a profecias que anunciaram o seu fim, seja o advento do cinema ou da televisão

Marcio Renato dos Santos

 

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“O romance é a arte acima da arte”. A afirmação de Raimundo Carrero pode dividir opiniões e separar leitores, críticos e escritores como um Grenal, em Porto Alegre, um Flaflu, no Rio de Janeiro, e um Atletiba, em Curitiba, faz com que uma pessoa se posicione em trincheira no lado oposto de quem veste uma camisa diferente da sua. Afinal, não poucos acreditam que a poesia é o máximo em termos de linguagem.
Outros preferem o cinema. Muitos defendem o teatro como a mais importante expressão artística — e há ainda os que militem pelo conto.

Mas o ponto de vista de Carrero, 65 anos, autor de 21 livros, tem a sua pertinência. O romance sobrevive à passagem do tempo. Inclusive, desafia profecias que sugeriram o fim da longa narrativa ficcional em prosa — tese que surgiu com o advento do cinema, no final do século XIX. “A estrutura básica da narrativa literária — tempo, espaço, narrador e personagem — se alterou em face das características próprias da narrativa cinematográfica. Por exemplo, o cinema provocou a não-linearidade e não-irreversibilidade do tempo, que pode parar, inverter-se e prolongar-se. A literatura do século XXI assumiu essa instabilidade do tempo através do desenvolvimento do recurso de colagem”, afirma a professora de Letras Clássicas e de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Lucia Rebello.

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O professor da UERJ Marcus Soares cita José de Alencar, com Iracema, Machado de Assis, com Dom Casmurro, e Guimarães Rosa, com Grande sertão: veredas, como pontos altos do romance no Brasil.

A especialista da UFRGS chama atenção para o fato de que, a partir do cinema, o romance se reinventou. “Nenhum outro gênero narrativo irá acabar com o romance”, diz a doutora em Letras e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Regina Kohlrausch. O cinema, observa a estudiosa, propicia uma imagem pronta, própria da sua natureza. “Por outro lado, a literatura proporciona uma descrição dessa imagem e a minha leitura, interpretação e imaginação irão propiciar a minha imagem, que poderá ou não coincidir com a imagem de outro leitor”, completa Regina Kohlrausch.

Quando a televisão surgiu, em meados do século XX, mais uma vez surgiram vozes decretando um novo apocalipse. Mas o romance não acabou. “Porque [o romance] oferece um tipo de experiência com o imaginário que não se encontra em nenhuma outra arte: tudo no romance, desde a criação até a recepção, depende, única e exclusivamente, do trabalho da imaginação”, argumenta o professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Marcus Soares, a respeito da longevidade da narrativa ficcional em prosa que sobrevive — entre outros motivos — por trazer conflitos humanos recriados artisticamente.

Mercado e mito
O marco zero do romance moderno divide opiniões: pode ser Dom Quixote (1605), de Miguel de Cervantes, ou Robinson Crusoe (1719), de Daniel Defoe (leia mais no artigo da professora Daniela Beccaccia Versiani). Durante esses mais de 300 anos, o gênero adquiriu cada vez mais prestígio e audiência. Atualmente, é mais fácil publicar um romance do que, por exemplo, um livro de contos.

“É verdade. Os números de vendas indicam isso. Eu pessoalmente, que adoro contos, acho uma pena”, comenta Vanessa Ferrari, editora da Companhia das Letras. A empresa paulistana tem mais de dois mil títulos de ficção no catálogo, com predominância de romances em relação aos contos. “A Companhia das Letras publica vários contistas, mas certamente se o público lesse mais, publicaríamos mais”, completa Vanessa.

A professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Tânia Regina Oliveira Ramos diz entender a lógica do mercado. “O romance permite a leitura intervalar, o marcar a página, o voltar, o esquecer, o desejo que a história não chegue ao fim”, analisa. Na opinião de
Tânia, o conto é um pequeno romance. “Mas ele [o conto] exige a atenção sem intervalo. Quem não lembra de um bom conto? Quem não tem na memória um bom conto para contar?”, questiona a professora da UFSC, acrescentando que — apesar da particularidade de cada um dos gêneros [romance e conto] — do ponto de vista do mercado editorial o romance é mais fácil para consagrar um autor. “E autor consagrado vende mais.”

Ivan Pinheiro Machado, da L&PM, sabe — na prática — que autores consagrados movimentam o negócio. Ele publica, entre outros romances, O cortiço, de Aluísio Azevedo, O jogador, de Fiodor Dostoiévski e Lucíola, de José de Alencar. Mas Pinheiro Machado não acredita que o romance tenha, necessariamente, mais apelo de venda do que o conto, sobretudo quando se trata de obras de autores contemporâneos. “O romance está em baixa”, dispara. “Só nos cadernos de cultura que o romance contemporâneo está em alta. Quem, de fato, lê essas longas narrativas produzidas no tempo presente? Talvez os jornalistas
culturais”, opina o editor e proprietário do selo gaúcho.

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Ivan Pinheiro Machado publica romances de nomes consagrados, como Honoré de Balzac, Charles Bukowski e Charles Dickens. Mas o editor e proprietário da L&PM não acredita na máxima segundo a qual o romance vende mais do que qualquer outro gênero literário. “Tudo é relativo. Um grande contista é cem vezes melhor que um mau romancista”, afirma.

Painéis, pessoas e abismo
1922 foi o ano em que o romance virou uma página. Para nunca mais voltar atrás. Depois da publicação de Ulisses, de James Joyce, tudo o que era regra consolidada linha após linha, século depois de século, começou a se desmanchar. Lucia Rebello, da UFRGS, acredita nisso. “A literatura pós-Ulisses trouxe a desestabilização da forma literária do romance a partir de um jogo de colagens com fragmentos de discursos da sociedade moderna, trazendo recortes da vida de personagens, seja de um homem, seja de uma mulher”, teoriza a professora gaúcha.

No caos moderno, acrescenta Lucia, Joyce usou o clássico de Homero e sua ordem como moldura para organizar o seu material ficcional e, em lugar de retratar os feitos de Ulisses, colocou um homem comum caminhando pelas ruas tortuosas de Dublin. “Enquanto o herói clássico lutava com gigantes, Bloom luta no cotidiano do homem moderno, com o absurdo de sua existência”, teoriza a estudiosa da UFRGS.

Raimundo Carrero concorda com o argumento de Lucia Rebello. “A partir de Joyce, o romance perde o sentido de multidão e passa a ser pessoal. Portanto, o romance passa para os polos extremos e depois entra no eu narrativo”, afirma. O romancista que ministra cursos de criação literária em Recife (PE) observa que, no contexto pós-Joyce, os autores escrevem sobre situações ou circunstâncias. “Não nos preocupamos com painéis, que seriam mera repetições de Tolstói”, diz, referindo- se, por exemplo, a Guerra e paz, monumental romance do autor russo — que em recente edição brasileira ultrapassa a barreira das duas mil páginas.

Mais do que a extensão, a qualidade de um romance depende de outras variáveis. “O romance é sempre uma carta anônima que um louco escreve ao mundo no clímax da angústia existencial”, define Carrero. O escritor compara uma narrativa ficcional ao bilhete de um suicida. “Um livro é lançado como o homem que segura o revólver no céu da boca. Todo verdadeiro escritor deve estar consciente disso. Por isso sobrevive a todas as mortes. A desgraça da literatura é que ela morre a todo instante, masimediatamente renasce”, reflete o autor do romance Minha alma é irmã de Deus — obra que recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional, e o Prêmio São Paulo de Literatura, como o melhor livro do ano.

Lucia Rebello, da UFRGS, analisa que o que faz de um romance um bom romance é a possibilidade de o leitor vivenciar uma segunda vida que evoque uma sensação consistente de realidade e autenticidade. “Além disso, o que a boa literatura sempre fez e deve continuar fazendo é questionar o nosso estar no mundo, refletir sobre nossas condições existenciais e históricas”, afirma a especialista. Marcus Soares lembra que um romance deve ser bem escrito. “Pode parecer um truísmo, mas é algo que se percebe em alguns novos autores: não há cuidado com as palavras. Um pouco de excelência estilística não faz mal a ninguém, muito menos ao leitor”, sugere o professor da UERJ. Soares faz questão de ressaltar que o “filosofismo” é algo que poderia ser evitado pelos escritores. “No Brasil, depois de Clarice Lispector, muitos romancistas acreditaram que a densidade existencial de suas narrativas dependeria da carga filosófica de seus textos. Ficou tudo muito enfadonho: não se atinge o grau de reflexão da escrita filosófica e ainda se perde a dinâmica narrativa de uma história bem contada”, sugere.

Acima de tudo, diz Carrero, o que se mantém no romance, desde Cervantes, desde sempre, é o abismo do ser humano — “e só o romance é capaz de contemplá-lo”.

Ilustrações: Allan Sieber