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Do verbo ao desenho

Literatura é, acima de tudo, palavra, verbo, mas, nos últimos anos, as graphic novels, ou romances gráficos, conquistam mercado e leitores provando que o desenho pode ser bem mais que ilustração em uma obra literária

Jones Rossi

As graphic novels, ou romances gráficos, são uma espécie de história em quadrinhos em traje de gala. Diferenciam- se das séries comuns por apresentarem tramas mais profundas e arte mais elaborada, além de serem voltadas para o público adulto. Em sua maioria são comercializadas em livrarias, mas várias obras estão à venda em bancas. E, não faz muito tempo, viraram uma categoria à parte na classificação literária, como um reconhecimento de sua importância artística.
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Claro que nada disso é uma regra. Para Alan Moore, autor de Watchmen, uma das graphic novels mais importantes de todos os tempos, o termo é puro marketing. “Para mim, significa ‘história em quadrinhos cara pra c*******’”, já disse o inglês. Neil Gaiman, outro autor respeitado, criador da série Sandman, também fez troça com o termo. “É como dizer a uma mulher que ela não é uma prostituta, e sim uma ‘dama da noite’”.

Mas, a despeito da pretensão inerente ao termo, as graphic novels alcançaram um patamar de qualidade poucas vezes visto nos quadrinhos dito comuns. Watchmen, escrita por Moore e ilustrada por Dave Gibbons, entrou para a lista dos 100 maiores romances do século XX elaborada pela revista Time. Maus, de Art Spiegelman, que retratou os nazistas como gatos e os judeus como ratos, é uma das principais alegorias sobre os terrores do nazismo já publicada.

Com uma crescente base de fãs, foi questão de tempo para as graphic novels se tornarem cobiçadas por outros meios. Hoje, produtoras de cinema, escassas de boas ideias, apostam cada vez mais em graphic novels para suas adaptações. Mesmo à revelia de Moore, Watchmen virou filme nas mãos do cineasta Zack Snyder, que já havia adaptado para as telonas 300, de Frank Miller. Spiegelman já foi assediado inúmeras vezes por agentes querendo transformar Maus em uma animação. O artista americano sempre rejeitou tais ofertas por considerar definitiva a versão em quadrinhos.

Mas nem sempre foi assim. As graphic novels foram consideradas por muito tempo um gênero menor. O termo apareceu pela primeira vez nos anos 1960, mas já existiam obras que podiam ser enquadradas dentro do gênero, como as histórias de Tintim, criadas pelo belga Hergé, e a série italiana Corto Maltese, de Hugo Pratt. O reconhecimento como arte e a popularização do termo vieram com Will Eisner (1917-2005) e seu Contrato com Deus, de 1978, publicado no Brasil pelas editoras Abril, Devir e Panini, ao longo das últimas décadas. A obra trouxe quatro histórias com temáticas fortes, como racismo, religiosidade e pobreza, desenhadas em preto e branco, de forma a realçar as expressões faciais das personagens.
Nos anos 1980, as graphic novels continuaram a impressionar pela experimentação e pela força de suas histórias. Frank Miller reinventou as histórias de super-heróis com O Cavaleiro das Trevas, título no qual retrata um Batman envelhecido e um Superman alienado, um marionete patriótico nas mãos da administração Reagan. Ele ainda fez Batman Ano Um, inspiração de Christopher Nolan para a mais nova trilogia do morcego no cinema, aclamada pela crítica.
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A década de 1980 ainda viu obras como V de Vingança, escrita por Alan Moore e ilustrada por David Lloyd. A história de um homem que luta sozinho contra um governo fascista e despótico entrou para a história da cultura pop, após virar filme em 2006. A máscara do personagem V se transformou em símbolo do grupo de hackers Anonymous, e foi utilizada nas manifestações de junho de 2013 no Brasil, que protestaram contra a corrupção.

Histórias menos conhecidas, como Estrada para a perdição, sem super-heróis ou cenários distópicos, também foram adaptadas para o cinema. Protagonizada por Tom Hanks, narra a saga de um assassino profissional que precisa proteger seu filho, testemunha de um crime cometido pela máfia. O filme teve seis indicações ao Oscar, incluindo melhor ator coadjuvante (Paul Newman), melhor direção de arte e melhor fotografia.

Persépolis, da iraniana Marjane Satrapi, revelou ao mundo a rotina dos jovens sob o regime teocrático dos aiatolás. Publicada em 2000 nos Estados Unidos, virou animação em 2007, também com a participação de Satrapi.

Mais recentemente, Walking Dead, de Robert Kirkman, foi transformada em uma série de sucesso em todo o mundo, ao mostrar uma epidemia que transforma a maioria da população em zumbi. O argumento batido serve de pano de fundo para esmiuçar as relações humanas em tempos de exceção.

Produção nacional

No Brasil, os romances gráficos estão vivendo um grande momento. Várias editoras estão apostando em autores nacionais, como as gigantes Companhia das Letras e Panini. Em 2012, a Companhia das Letras reeditou em apenas um volume Diomedes, de Lourenço Mutarelli. Publicado pela primeira vez pela Devir, em 1999, a saga do detetive foi uma das primeiras graphic novels nacionais a cativar o público e se tornar objeto de adoração cult.

Mutarelli é um quadrinista experiente, mas também escritor, autor de obras como O cheiro do ralo. Sem querer, antecipou uma prática que se tornaria tendência nos anos 2000 e 2010: a de escritores jovens, afeitos à cultura pop, portanto familiarizados com a linguagem dos quadrinhos, produzindo roteiros para graphic novels.

Rafael Coutinho, desenhista e filho do cartunista Laerte, e o escritor Daniel Galera, autor de Cordilheira e do aclamado Barba ensopada de sangue, produziram uma das principais obras do período. Cachalote, com mais de 300 páginas, trouxe como marcas registradas os diálogos cheios de referências de Galera e ao mesmo tempo um ritmo ágil impresso pelo desenho de Coutinho, coautor do livro.

Em entrevista ao site da Veja, Galera resumiu com precisão as semelhanças entre a narrativa do romance e da graphic novel. “O romance e a graphic novel representam coisas muitos parecidas nos domínios da prosa e dos quadrinhos, respectivamente — histórias de maior fôlego, com personagens e cenários bem variados, muitas vezes com vários protagonistas, permitindo uma construção lenta e elaborada da narrativa, e também abrindo espaço para experiências com a linguagem”, afirmou.

Já uma das diferenças, segundo Galera, “é que, no caso de uma HQ (História em Quadrinhos), a concepção visual do personagem pesa bem mais, enquanto na literatura essa aparência pode ser apenas insinuada ou até mesmo omitida, deixando muita coisa para a imaginação do leitor.” Outra diferença é que, trabalhando em conjunto, a criação dos personagens e dos enredos se torna colaborativa. “A gente colocou as ideias de cada um na mesa de bar e fomos trabalhando em cima dessas faíscas iniciais em várias reuniões, desenvolvendo os personagens que os dois acreditavam ter mais potencial e descartando os que não pareciam tão promissores”, diz Galera.
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O processo de confecção é totalmente diverso do de um romance tradicional. “Depois de várias reuniões com muitas anotações e esboços, nas quais criamos os personagens e as histórias, eu escrevi uma primeira versão literária do roteiro, colocando as histórias em detalhes no papel. Fomos formatando isso num roteiro mais técnico, apropriado às HQs, com separação por páginas e quadrinhos, e com isso fomos também reinventando as histórias e acrescentando coisas. A partir do roteiro técnico, o Rafa desenhou storyboards de todo o livro, e nessa etapa também modificamos muito o material, o que me forçou a mexer o tempo todo no roteiro. Por fim, com storyboards de todo o livro e um roteiro definitivo, as páginas foram sendo finalizadas pelo Rafa.”

Outro escritor da nova geração da literatura brasileira a mergulhar no mundo dos romances gráficos foi Joca Reiners Terron. Seu livro Guia de ruas sem saída é experimental ao extremo, ao misturar texto e ilustrações, estas criadas pelo curitibano André Ducci. “As imagens foram pensadas para remeter às narrativas visuais de alguns artistas gráficos pioneiros no assunto, como Frans Masereel e Otto Nückel, que apresentei ao Ducci como referências. Esses artistas produziram narrativas sem palavras entre os anos 1920 e 1940 do século passado. A linguagem deles se baseava na xilogravura e era influenciada pelo cinema mudo, principalmente filmes expressionistas alemães”, explica.

O uso de referências cinematográficas é outra característica desses autores. Publicado pela primeira vez na língua inglesa, o romance Barba ensopada de sangue, de Galera, recebeu uma crítica elogiosa no New York Times na edição do dia 19 de janeiro, que, entre outras coisas, destacou a semelhança do trabalho do escritor gaúcho com as histórias dos irmãos Coen, autores de filmes como O grande Lebowski e Onde os fracos não têm vez.

Nas bancas

O Brasil tem visto um fenômeno interessante acontecer nos últimos anos: a popularização das graphic novels nacionais de maneira sem precedentes, talvez só semelhante ao que acontece na França e nos Estados Unidos. Tudo isso está calcado na popularidade dos personagens da Turma da Mônica. Em 2009, Sidney Gusman, responsável pelo planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções, iniciou o projeto MSP 50, uma série de quatro graphic novels nas quais artistas nacionais fizeram uma releitura dos personagens clássicos da Turma da Mônica — uma forma de homenagear os 50 anos de carreira de Mauricio de Sousa.

Desde então, ao ritmo de quase uma obra nova a cada quatro meses, sempre mirando o público juvenil-adulto, as graphic novels estrelando personagens da Turma da Mônica se tornaram um sucesso. A fórmula, criada por Gusman, é escolher o artista nacional mais adequado para determinado personagem. Já foram publicadas histórias do Chico Bento enfrentando alienígenas (Gustavo Duarte), do Astronauta em uma trama existencialista e até um pouco sombria (Danilo Beyruth), e da gênese do Bidu (Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho). E todas estão à venda em bancas — além, é claro, das livrarias.

“O Mauricio é o rei da banca. A gente quer mais leitor e mais leitor a gente pega na banca. Nos orgulhamos de receber cartas do interior do Piauí, de Goiás, do Paraná. Os números são muito bons. Todas as graphic novels estão em reimpressão”, conta, entusiasmado, Gusman. Segundo ele, muitos leitores adulunitos, que sempre leram quadrinhos da Turma da Mônica na infância, foram fisgados novamente.

“O Mauricio enxergou que era uma ampliação de público. Não existiam produtos para o leitor adulto. Tem gente que me encontra e diz: ‘Vocês me fizeram voltar a ler quadrinhos depois de 20, 30 anos’”, afirma Gusman.
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Em breve, uma nova fornada de graphic novels deve ser lançada com outros personagens, como Penadinho, Turma da Mata (feita por Arthur Fugita e Roger Cruz, que desenhou nos Estados Unidos X-Men e Batman), Papa-Capim (Marcela Godoy e Renata Guedes) e o Louco (por Rogério Coelho).

Gusman ressalta que a série MSP 50 se transformou numa grande vitrine para os artistas brasileiros que antes eram desconhecidos do público. “Os autores brasileiros independentes estão aproveitando. Os caras estão vendendo a rodo. Ainda tem muito pra melhorar. Mas a distância pros quadrinhos internacionais diminuiu.”

Clássicos da literatura

Uma obra semelhante na concepção foi organizada pelo americano Russ Kick. Ele recrutou ao longo dos anos desenhistas famosos, como Robert Crumb, para ilustrar clássicos da literatura universal, e reuniu tudo em 180 obras divididas em três volumes. O livro ganhou o nome de Cânone gráfico - clássicos da literatura universal em quadrinhos e o primeiro volume foi publicado no final de 2014 pela editora Boitempo.

Do épico babilônico A epopeia de Gilgamesh a Graça infinita, de David Foster Wallace, passando por Shakespeare e Dante Alighieri, os clássicos foram adaptados com extremo zelo. O tradutor de A epopeia de Gilgamesh, por exemplo, chegou a estudar a escrita cuneiforme e aprendeu a ler um terço dos símbolos do silabário assírio.

“Percebi a enorme quantidade de adaptações literárias em quadrinhos que havia sido publicada nos últimos anos. Meu instinto de antologista se aguçou. Eu precisava reunir o melhor do que já havia sido feito, encomendar novas adaptações e pôr tudo aquilo num lugar só”, conta Kirk. “A ideia parecia óbvia, mas ninguém a tivera ainda: criar um livro da espessura de um tijolo que abrangesse séculos, países, línguas e gêneros. E incluísse romances, contos, poemas, peças, autobiografias, discursos e cartas, além de obras científicas, filosóficas e religiosas.”

Embora esteja ciente do batido discurso de que essas adaptações são uma porta de entrada para os clássicos originais, Kirk deixa claro: “é uma obra artística e literária independente, um fim em si.” Para quem conhece a força das graphic novels, não é novidade.