Capa | Nelson Rodrigues

Novas temporadas para o escritor, dramaturgo e o personagem Nelson Rodrigues

Lançada há 26 anos, a biografia O anjo pornográfico desencadeou a redescoberta da obra rodrigueana — e em breve vai virar filme e peça de teatro 

Alvaro Costa e Silva

    João Caldas Filho/Divulgação
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Mel Lisboa e Malvino Salvador na adaptação de Boca de ouro para o universo carnavalesco por Gabriel Villela.

Em 1992, quando Ruy Castro publicou a biografia O anjo pornográfico, poucos imaginavam que a vida de Nelson Rodrigues havia sido igual ou até mais espantosa que qualquer uma de suas histórias. Uma escalada de dramas e tragédias familiares das quais o dramaturgo extraiu sua obsessão pelo sexo e pela morte.

Com o sucesso do livro, operou-se um quase milagre: a ressurreição de Nelson Rodrigues como escritor. Fenômeno que se traduziu no reaparecimento nas livrarias de sua obra não teatral e na montagem e remontagem de suas peças. A biografia segue no catálogo da Companhia das Letras tirando seguidas reimpressões e acaba de ganhar uma edição portuguesa pela Tinta da China. A mesma editora lançou uma seleção dos contos de A vida como ela é e o romance O casamento.

Não passa uma temporada sem Nelson nos palcos do país, em especial do Rio de Janeiro. Recentemente, Bonitinha, mas ordinária foi levada na sede da Companhia de Teatro Contemporâneo, em Botafogo, com direção de Eliza Pragana. Parte da série tragédias cariocas, Boca de ouro foi adaptada em versão carnavalesca por Gabriel Villela — que tem no currículo a montagem de outras três obras do dramaturgo — e exibida no palco do Sesc Ginástico, no Centro do Rio. O público de São Paulo pôde assistir no Teatro Faap A serpente, a última peça de Nelson, dirigida por Eric Lenate.

Até um velho “problema” — a dificuldade de traduzir para outras línguas a linguagem característica de um tempo e um espaço específicos, o Rio entre as décadas de 1940 e 1960 — tem avançado para uma solução. Joffre Rodrigues (1941-2010), o filho de Nelson produtor e diretor de cinema, traduziu para o inglês, em parceria com Toby Coe, 11 peças, publicadas pela Funarte em dois volumes. A vida como ela é, a série de histórias escritas diariamente para o jornal Última Hora, ganhou duas versões: Life as it is, por Alex Ladd, editada em Nova York; e La vida tal cual es, por Cristian de Nápoli, em Buenos Aires.

“Nelson não é só o maior dramaturgo, mas o maior gênio das letras que o Brasil produziu no século XX”, afirma o escritor Marcelo Mirisola, que elege O anjo negro como sua peça preferida: “Uma obra maldita que merecia ser retomada nesses tempos de vigilância e patrulhamento histéricos. Na peça, Ismael é um negro que odeia ser negro, um negro bem-sucedido e invejoso, que é um lixo humano. Ele cega o meio-irmão Elias porque este era bonito e branco. É uma sucessão de aberrações, assassinatos e mutilações de almas”.

O mais surpreendente é que o escritor, na altura de sua morte, em 1980, vivia no limbo e um tanto esquecido, curando as cicatrizes das lutas políticas dos anos 1960, do seu apoio ao regime militar e da fama de reacionário. Numa noite de autógrafos em Florianópolis, em 1977, Nelson aguardou horas com a caneta na mão. Ninguém apareceu.

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Lançada há 26 anos, a biografia O anjo pornográfico provocou um revival de Nelson Rodrigues.

É um episódio difícil de acreditar hoje em dia, quando a assinatura com o punho de Nelson nos livros vale uma pequena fortuna em leilões. Mas, sobretudo, quando sua obra e pensamento estão definitivamente incorporados à cultura brasileira. Tanto que a biografia O anjo pornográfico vai virar peça e filme. O longa-metragem, ainda em fase de pré-produção, terá roteiro de Nelson Motta. A peça, que deve estrear no ano que vem com direção de Gustavo Nunes, está sendo escrita por Heloisa Seixas e Julia Romeu. O ator mais cotado para encanar o personagem principal é Thelmo Fernandes.

“É um grande desafio”, diz Heloisa Seixas. “Me obriguei a reler as obras teatrais do Nelson e, mais uma vez, fiquei tonta em comprovar o quanto ele é genial. Gosto principalmente das chamadas peças míticas, de acordo com a classificação de Sábato Magaldi: Álbum de família, Anjo negro, Doroteia e Senhora dos afogados. Nelas, ele atingiu um nível altíssimo de criação. E também de loucura”.

“Nelson Rodrigues é o nosso Shakespeare”, elogia o escritor e ator Sergio Fonta, que, no ano passado, interpretou o personagem Salim Simão, de O anti-Nelson Rodrigues. “Sua obra é perene e continuará sendo encenada através dos tempos. Daqui a 100 anos, Nelson permanecerá em cartaz. Ele mostrou as entranhas da família, a sordidez humana e seus delírios, suas paixões destemperadas. O valor intrínseco de sua obra não se perde. Tampouco a capacidade criadora, uma galeria de tipos inesquecíveis, chocantes ou não, mas todos reconhecíveis em qualquer sociedade.”

O Nelson prosador, que durante anos foi desprezado pela crítica e escondido no escaninho da subliteratura, também passa por um período de reavaliação. “É um dos maiores romancistas do Brasil, em função de dois romances excepcionais: Asfalto selvagem, escrito em forma de folhetim, e O casamento. São livros que seguem o princípio das tragédias cariocas que ele adotou em suas obras de teatro. Romances trágicos, que invertem a lógica machadiana. Machado de Assis foi o gênio que anulou a corda trágica, fazendo ironia de tudo. Nelson é seu inverso: faz, das trivialidades, incomensuráveis tragédias”, define Alberto Mussa, ele próprio um escritor vinculado ao romance urbano carioca.

“Nelson era um talento genuíno e natural, mas não era um erudito”, acredita Gustavo Nogy. “Foi, mais do que qualquer outro, responsável por escrever um texto de altíssimo calibre literário com linguagem coloquial: a fala urbana não só do carioca, mas do brasileiro. Concordo com o Sergio Rodrigues [escritor carioca, autor de O drible]: não há melhor escola de diálogos, de escrita de diálogos, que Nelson Rodrigues. Talvez só Luiz Vilela se lhe compare, e ainda assim Nelson tem mais carisma”.

“Nelson Rodrigues é um dos três maiores dramaturgos do Ocidente, ao lado de Sófocles e Shakespeare”, afirma Alberto Mussa, para encerrar a questão.