Capa | Nelson Rodrigues

O escritor vence o tempo

Quase 40 anos após sua morte, o legado polêmico de Nelson Rodrigues continua atual e segue dividindo opiniões em meio ao “Fla-Flu” ideológico acirrado das ruas e redes sociais

Alvaro Costa e Silva

    Fotos: Reprodução
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Na época dos preparativos para a malfadada Copa do Mun do de 2014, nunca se falou tanto em complexo de vira-lata. O conceito segundo o qual o brasileiro se coloca perante o mundo em condição de inferioridade foi criado por Nelson Rodrigues às vésperas do Mundial de 1958. Com a conquista do caneco pelo time de Pelé, Garrincha, Didi e Nilton Santos, o complexo estaria enfim sepultado. O problema é que a vira-latice ululante se expandiu para além do futebol e volta de tempos em tempos, provando que o velho Nelson, em sua condição de decifrador da alma brasileira, continua mais atual do que nunca.

A presença de Nelson Rodrigues (1912-1980) foi tão marcante que é irresistível perguntar o que ele pensaria e escreveria hoje, quase 40 anos depois da sua morte. O crítico Luís Augusto Fischer indaga-se a respeito, lembrando que a maior qualidade de Nelson, em suas colunas de jornal, era a intuição crítica (e autocrítica) sobre os comportamentos da moda, aliada ao faro histórico, fino humor e fluência narrativa.

“Ele era mesmo um singular, que admirava Médici por descer ao vestiário do Maracanã depois de um jogo. Atacava Dom Hélder Câmara por sua militância em favor dos pobres do Nordeste, defendia Caetano Veloso vaiado em 1968 e celebrava seu amigo comunista João Saldanha. Não acho que ele se limitaria a falar mal da esquerda e da correção política, como fazem seguidamente alguns cronistas que o admiram, como Luiz Felipe Pondé e Arnaldo Jabor. Mas também não teria complacência com tanta coisa que a esquerda tende a relativizar. Imagino que ele teria coragem para rever seu apoio a Médici. FHC seria ironizado em sua empáfia acadêmica e Lula seria atacado em seu populismo e sua vontade de poder. Em geral, Lula seria um enigma mais interessante para ele do que FHC. O que diria sobre Bolsonaro? Ou sobre o fim total do jornalismo, que ele conheceu como poucos?”, pergunta-se Fischer.

Para o romancista Alberto Mussa, o Nelson Rodrigues atual seria “um conservador humanista ou um capitalista de esquerda”. O ensaísta e cronista Gustavo Nogy acredita que ele manteria a mesma postura: “Liberal demais para conservadores, conservador demais para liberais, repugnante para ambos”. Ao elaborar seu exercício de imaginação, o escritor Marcelo Mirisola não tem dúvida: “Nelson seria linchado e queimado em todas as fogueiras, à esquerda e à direita”. 

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Absolutamente atual
Biógrafo do dramaturgo, Ruy Castro costuma citar uma frase — escrita em 1968 — para dar a medida da permanência do seu biografado: “Em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices”. Essa atualidade reside não só nas peças teatrais, que não param de ser reencenadas, mas sobretudo na obra não teatral (que o próprio Ruy Castro organizou em 12 volumes, um dos quais, Flor de obsessão, reunindo cerca de mil frases lapidares).

Como escritor, Nelson produziu 17 peças de teatro, um romance (O casamento) e oito folhetins (seis assinados por Suzana Flag, um por Myrna e um com o próprio nome). O material que deixou como jornalista, em mais de 55 anos de carreira profissional, é imenso e ainda hoje provoca descobertas, entre pesquisadores, de novos contos, artigos e crônicas. Para se ter uma ideia, nas décadas de 1950 e 1960, chegou a manter colunas diárias em dois ou três jornais. Em todas elas, não escondeu a marca da sua opinião a respeito de qualquer assunto.

A época de sua atuação na imprensa coincidiu com a dos cronistas mais espetaculares: Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antonio Maria, Carlinhos Oliveira, Clarice Lispector, Elsie Lessa. Com mais ou menos intensidade, essa turma cultivou o lirismo — do qual Nelson sempre passou longe — e a pequena história boêmia e mais sofisticada da Zona Sul carioca. Nosso herói, que usava suspensórios, não bebia uísque e tinha uma voz quase bovina, sempre preferiu os mais dramáticos e adúlteros subúrbios da Zona Norte. 

Talvez por essa abordagem distinta, Gilberto Freyre resolveu compará-lo ao maior romancista português do século XIX: “Em Nelson Rodrigues, como em Eça de Queiroz, o escritor vence o tempo como escritor, embora servindo-se do jornal, da correspondência para jornal, do comentário ao acontecimento do dia. Nelson Rodrigues é, dos dois, o mais vigoroso nessa espécie de expressão literária: a transferível de jornal para livro. Ele é lido em livro, tão forte de virtude literária, quanto lido em jornal. Repete Eça neste particular, com mais vigor do que Eça”.

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Cronista que excede seus limites 
No livro Inteligência e dor: Nelson Rodrigues ensaísta, publicado em 2009, Luís Augusto Fischer mostra que, em seus textos jornalísticos, Nelson está mais para Michel de Montaigne do que para Rubem Braga. “O tipo de texto que ele praticava carrega traços que a crônica está longe de ter — um autoexame profundo, uma enorme coragem para confessar suas próprias mazelas, que permitiram aquela coragem meio suicida de confrontar a opinião média do seu próprio leitor. Estamos falando de um texto superior, que se destaca contra o fundo de uma excelente tradição de textos breves que o Brasil tem”, afirma o crítico, que indica quatro obras principais: as memórias de A Menina sem estrela (1967) e as coletâneas O óbvio ululante (1968), A cabra vadia (1970) e O reacionário (1977).

Autor do recém-lançado Saudades dos cigarros que nunca fumarei, uma seleção de ensaios, Gustavo Nogy aponta a diferença entre os gêneros para melhor situar Nelson Rodrigues: “Crônica e ensaio são aparentados, semelhantes, mas há distinções. Dos cronistas brasileiros, certamente Nelson é o mais ensaísta. Ele explodiu os limites da crônica e navegou no mar aberto, revolto, do ensaio. Porque ensaio é isso: uma crônica que excede seus limites, seu provincianismo criativo, e se abre universalmente. A crônica parte do anedótico e fica no anedótico; ela se contenta em dar um passeio no bairro. Já o ensaio, muito embora parta também do pessoal, do anedótico, do cotidiano, não se contenta com isso: ousa, instiga, questiona, ironiza. Nelson Rodrigues é um dos maiores ensaístas brasileiros”, garante.

Crítico que melhor estudou a obra rodrigeana, Sábato Magaldi escreveu no seu longo prefácio ao Teatro completo: “Um dia, será necessário rever o epíteto de reacionário que o próprio Nelson se afixou. Na verdade, há muito de feroz ironia nesse qualificativo. Porque Nelson Rodrigues foi reacionário apenas na medida em que não aceitou a submissão do indivíduo a qualquer regime totalitário. Quando a pessoa humana for revalorizada, também desse ponto de vista ele será julgado revolucionário”.

Reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo
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Gênio incompreendido
Para Marcelo Mirisola, tanto o dramaturgo quanto o jornalista foram mal compreendidos em seu tempo: “Foi censurado pela esquerda e pela direita. Hoje não teria a chance sequer de ser mal interpretado. O ofício que praticava perdeu a relevância, digamos, tecnológica. Cronistas e ensaístas são como sapateiros e alfaiates de antanho, peças de museu. A plateia do Nelson morreu de sífilis e tuberculose”.

Na mesma batida, Gustavo Nogy põe mais lenha na questão: “Não foi bem compreendido em sua época, e seria ainda menos compreendido atualmente. Sofreu censura e reprovação por suas peças, e sofreu o mesmo por seus contos e ensaios — era pornógrafo demais para os conservadores, reacionário demais para os esquerdistas. Hoje aconteceria exatamente a mesma coisa: a direita mais obtusa que acredita que representar pecados e sordidezes equivale a aprovar pecados e sordidezes, o reprovaria; a esquerda mais obtusa que acredita na superstição do socialismo o reprovaria igualmente. De resto, o politicamente correto faria as vezes de mediador”.

Alberto Mussa acredita que a aceitação de uma personalidade como a de Nelson Rodrigues em nossa era de Fla-Flu ideológico seria no mínimo prejudicada: “Apesar da grande politização geral, das grandes reivindicações do mundo contemporâneo, dos grandes avanços, o nível geral de inteligência é bem menor. E sem inteligência não se entende Nelson. Não se entende o alcance antropológico do seu pensamento, muito acima de uma discussão política”.

Provocativo, Mussa costuma afirmar que considera o gênio de Nelson Rodrigues maior que o de Guimarães Rosa. Ele explica: “Acho que os dois operam uma mecânica da língua, uma mecânica lexical. O Rosa a partir de um material, digamos, etnográfico, vai buscar uma incrível poesia vocabular: amplia significados e chega a criar palavras. O Nelson parte da linguagem comum, coloquial, com elementos da oralidade vulgar e urbana, para dar a ela uma dimensão tão ironicamente trágica, que me parece milagrosa. Rosa aumenta o espectro, aumenta o alcance; Nelson reduz, mas para um nível tão preciso, tão minimamente exato, fazendo a palavra parecer um ponto geométrico”.

Luís Augusto Fischer lembra que, numa sequência de textos antológicos, Nelson tratou da comoção em torno da morte de Guimarães Rosa em 1967: “Ele faz um registro cru da morte, essa parte tão central da vida como ela é, mas confessa seu ciúme pelo nível artístico que Rosa tinha atingido. Revela sua relativa covardia ao pensar que, bem, era melhor que Rosa tivesse morrido, e não ele mesmo”.

Quem mais teria essa coragem? O que leva a pensar em possíveis herdeiros literários. “Um caso raro, talvez único, de emparelhamento com Nelson é o de Paulo Francis, que por uns quantos anos na Folha (mais) e depois no Estadão e no Globo (menos) polarizou a opinião pública culta no país. No tempo da Folha, ele tinha a marca da autocrítica, que depois perdeu, junto com suas antigas crenças, digamos, socialistas ou socialdemocratas”, afirma Fischer.