Capa | Michel Houellebecq

“Nosso anti-herói”

De volta às livrarias brasileiras com Serotonina, Michel Houellebecq é o piadista mais relevante do debate literário atual

PAULO POLZONOFF JR.

       Ilustrações: Benett
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Michel Houellebecq escreve correndo riscos. Não que seu estilo seja muito ousado — ele definitivamente não é dado a experimentações, exceto por um fluxozinho de consciência aqui e ali. Nem que seus personagens sejam ambíguos ao limite. Os riscos que Houellebecq corre são dois, e de outro tipo, muito mais ousado, ambicioso e recompensador: o riso e a perenidade. Isso porque, como o maior escritor cômico (uma comicidade que resvala na sátira, sem jamais se embebedar realmente dela) da atualidade, Houellebecq trata, em suas obras, de temas contemporâneos, que os detratores considerarão superficiais e até preguiçosos e os admiradores considerarão relevantes e até urgentes. 

A começar por seu livro de estreia, Extensão do Domínio da Luta, que tive o prazer de ler ainda na década de 1990, numa cópia a muito custo lida, já que tive o desprazer de viver numa época em que conseguir ler certos livros (e ainda mais sendo monoglota) era um desafio. Mas valeu a pena. Extensão, tive a impressão assim que terminei a leitura, e ela permanece ainda hoje, quase 25 anos mais tarde, é uma releitura de O Estrangeiro, de Camus. “Releitura”, aqui, é um eufemismo, claro. A única coisa diferença é que Houellebecq transportou o enfado do Mersault para a França urbana do fim da década de 1990.

Naquela época, e aqui a ambientação não é tão pronunciada como nos livros posteriores, sobre os quais daqui a pouco falaremos, o maior medo da França, logo em seguida concretizado, era cair na irrelevância cultural mundial. Isto é, tal qual o protagonista do romance curto, quase uma novela, chamado de “Nosso Herói”, a França via o mundo inteiro rejeitá-la, daí sua profunda crise existencial que, anos mais tarde, desembocaria no livro de maior sucesso de Houellebecq: Submissão.

Extensão do Domínio da Luta, no entanto, é um livro contido, quase hesitante. Mas já se percebe ali a gênese daquele que viria a se tornar um especialista em transformar o cotidiano imediato das notícias, quase todas tragicamente trágicas, em algo que se cristaliza num personagem, que por sua vez se concretiza em literatura para, quem sabe assim, encontrar alguma eternidade.

No livro, o riso também é contido, as pontas dos lábios levemente curvadas, uns dentes que não ousam se mostrar, talvez até um nó na garganta. Em Extensão, ri-se como quem ri diante de um homem decapitado (ou qualquer imagem de horror que lhe venha à mente). Isto é, há algo de absurdamente (para não dizer doentiamente) cômico na visão de uma cabeça separada de um tronco, assim como há algo de absurda e doentiamente cômico na vida de um perdedor nato, rejeitado por todo mundo, até pelo leitor, até por si mesmo, incapaz de perceber que a salvação está sempre dentro de si. A piada de Houellebecq aqui é esta: um niilista que não sabe o que é niilismo dentro de um Renault daqueles bem apertadinhos cheio de niilistas como ele, sem saber para onde ir e indo para o único destino possível a um niilista: a autodestruição.

Clonagem, Deus e fé
Depois de Extensão, Houellebecq alcançou o estrelato com Partículas Elementares, seu livro formalmente menos inspirado. Aliás, talvez seja hora de falar que a prosa de Michel Houellebecq não está isenta de defeitos graves. Defeitos que ele compensa com o humor e com a ambientação quase que jornalística de seus livros, mas ainda assim defeitos. O mais grave deles, a meu ver, é a incapacidade de compor personagens realmente tridimensionais. Os personagens de Houellebecq, sobretudo as mulheres, não são críveis. Eles são quase personagens desses desenhos animados para adultos, hoje tão na moda.

Mas dei um passinho para o lado aqui. Onde estava mesmo? Ah, sim: Partículas Elementares. O romance foi publicado em 1998 e parte de seu estrondoso sucesso se deve justamente ao fato de Houellebecq ignorar a relevância atemporal para se ater a temas muito marcados em certo segmento de tempo. Neste caso, o tema é a clonagem e tudo o que ela envolve, inclusive o questionamento de Deus e a substituição da fé no Intangível pela fé na ciência, com seus gênios ultramaterialistas e ultraempiristas.

Pena que a tradução em que li o livro, ainda no fim do século passado (se não me falha a memória), ignorasse completamente o caráter humorístico deste que é um dos livros mais engraçados da obra de Houellebecq. O retrato que o autor francês faz da geração paz & amor é impiedoso e esclarecedor. Todos aqueles hormônios, misturados aos delírios igualitários de 1968, deram origem a uma geração dividida entre dois deuses mundanos: o formalismo científico, com sua pretensão de compreender o mundo por meio do intelecto, e o desejo, com sua pretensão de copular com qualquer coisa em movimento.

Uma releitura em inglês, anos mais tarde, me rendeu gargalhadas de assustar os vizinhos. Bruno Clément, o personagem pansexual do romance, é uma voz pateticamente niilista e vê tudo à sua volta através das lentes de um niilismo fora de moda que tem o agradável efeito colateral de fazer cosquinhas no leitor. Aqui vale destacar o retrato freudianamente crudelíssimo que Bruno faz da mãe, representante daquela geração autocentrada, hipersexualizada e melancolicamente vazia.

Sobre o livro, Michel Houellebecq teria dito que “ou ele me fará famoso ou me destruirá”. Frase tipicamente houellebecquiana, isto é, uma piada baseada na hipérbole, na qual a imprensa cai como um espectador desses programas humorísticos baratos de trocadilhos indignos. O livro se tornou de fato um best-seller, Houellebecq foi chamado de “niilista nojento” por algum crítico famoso da época, ganhou o epíteto cômico de enfant terrible (o que lhe garantia acesso imediato a qualquer assunto polêmico a partir de então) e passou a incorporar até fisicamente um personagem adoravelmente abjeto: o intelectual francês do século XXI. Com seus cabelos desgrenhados, o onipresente cigarro, o olhar meio perdido que o leitor sempre espera no “gênio” e aquele desdém pela vida que há séculos seduz os faustinhos por aí, Houellebecq se transformou de uma vez por todas numa caricatura de um homem que almeja a imortalidade por meio da literatura.

Espírito do tempo
Já no papel de escritor caricato, Michel Houellebecq lançou Plataforma — uma leitura para mim inesquecível por motivos um tanto quanto alheios a este texto, mas que conto assim mesmo. Naquela época, se Houellebecq era o escritor caricato, eu era o leitor caricato. E agora, pensando bem, Houellebecq talvez seja hoje o escritor preferido deste tipo de leitor (com os quais não me identifico mais, vale dizer). Eu, cheio daquele espírito crítico juvenil que tanto se assemelhava ao estilo mamãe-quero-ser-intelectual-francês de Houellebecq, recebi as provas do romance (o que fazia com que eu me sentisse ridiculamente importante) e o devorei numa só tarde. Na época, eu morava num balança-mas-não-cai no centro, num quarto-e-sala esparsamente decorado com móveis baratos, onde eu era deliciosamente feliz no auge dos meus 20 e poucos anos.

Plataforma, com seu humor mais afiado do que uma faca Ginsu e sua desesperança em perfeita consonância com minha rotina naquela “mansarda”, foi uma das melhores epifanias literárias da minha vida. Que essa epifania não tenha se repetido nas várias tentativas de releitura é detalhe. Ela permanece como lembrança dos comentários que, como nos outros livros do autor, sempre aparecem como que por acaso, quando menos se espera. O humor de Houellebecq não está em cenas elaboradas para tirar do leitor uma gargalhada. É sempre um detalhe: um adjetivo aqui, uma metáfora quase que nonsense lá, um aforismo acolá e, às vezes, uma sentença irresponsável quando menos se espera.

Só é triste perceber como Plataforma, um pouco mais do que Partículas Elementares e Extensão do Domínio da Luta, envelheceu mal. O livro tem como pano de fundo o turismo sexual e o terrorismo, e o clima geral é o daquela euforia pós-11 de Setembro, aquela sensação difusa de que é preciso aproveitar a vida (o que, para Houellebecq, significa fornicar o máximo possível) porque a catástrofe nos espreita a cada esquina. Na época, e estamos falando de um livro lançado há quase 20 anos, o pavor que a livre circulação de pessoas pelo mundo (tanto para fornicar quanto para matar) despertava era algo que não tinha ainda atingido seu apogeu. Daí a precisão incômoda de Houellebecq como autor capaz de sedimentar nas páginas do livro o espírito do tempo.

O problema, insisto, é que o espírito do tempo chega e assusta, mas invariavelmente passa. O livro, contudo, permanece, mas com aquele gostinho de passado. Talvez o gosto pudesse ser diluído por outras características do romance, como os personagens e até mesmo a trama, mas, como já disse aqui, essas não são as características mais fortes de Houellebecq. Resta, portanto, o humor, mas um humor que, com o passar do tempo, cada vez mais se torna um humor que precisa de referências, um humor para iniciados, um humor — sendo bem sincero — velho, quase como uma piada de Ary Toledo contada numa festa de millennials.

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Autoimportância
Depois do estrondoso sucesso de Plataforma, a desgraça. Não, exagero meu, não foi exatamente uma desgraça. Mas foi certamente uma decepção. Michel Houellebecq parece ter acreditado nos críticos que o apontavam como o maior e melhor (mas não o mais bonito, por motivos óbvios) e escreveu dois livros que, quero crer (e creio, afinal, sou tão esperançoso que acredito que, se eu escrever aqui que a esperança é a última que morre, os leitores entenderão a piada), são autopiadas, isto é, tentativas de um humor à la Andy Kaufmann que fugiram ao controle do autor. Porque a alternativa a isso é, como já disse, a decepção de ver um autor até então ousado cedendo à presunção da autoimportância — se bem que não há nada mais francês do que isso, né?

A Possibilidade de uma Ilha e O Mapa e o Território são os livros mais celebrados pela crítica especializada. E a crítica especializada, isto é, aquela cujo bom gosto literário tem de ser atestado por um diploma da Sorbonne, sabidamente não gosta de humor — e não está nem aí para a urgência dos temas tratados no romance, porque seu tempo é outro (alguém mais maledicente do que eu diria que o tempo dela é a do esquecimento e da irrelevância). Daí porque esses dois livros são elogiados pela crítica na mesma medida em que são esquecidos pelo leitor médio. E por “leitor médio” estou me referindo a mim mesmo.

Não à toa, A Possibilidade de uma Ilha recebe elogios como “refinado” e “sutil”, que são eufemismos para “aborrecido” e “pretensioso”. O Mapa e o Território ganhou o prêmio literário mais importante da França, o Goncourt — prêmio que, na minha não tão humilde opinião, é garantia de ostracismo para o agraciado. Vale dizer ainda que, por causa de O Mapa, a revista Slate acusou Houellebecq de ter plagiado algumas passagens da Wikipédia em francês — o que, por sinal, pode fazer com que eu seja acusado, nesta frase em específico, de plagiar esta mesma passagem da Wikipédia em inglês. Nunca se sabe.

Tendo experimentado o sabor amargo do reconhecimento acadêmico e o ostracismo e irrelevância comumente a ele atrelados, Michel Houellebecq voltou a ser um escritor digno de nota graças a um livro que é uma obra-prima do humor e também graças a uma tragédia. (Ah, e ainda por tratar de um tema urgente, urgentíssimo — não posso esquecer de mencionar). Estou falando de Submissão, também conhecido como o-único-livro-que-li-desse-cara.

Charlie Hebdo
Submissão seria lançado em Paris naquele fatídico dia 7 de janeiro de 2015, quando terroristas armados invadiram a publicação satírica Charlie Hebdo, matando nada menos do que 12 pessoas. A justificativa para o ataque (como se houvesse justificativa para a barbárie) foi o fato de a revista publicar charges ofensivas ao Islã. Imagine, então, o perigo que corria um escritor que lançava um livro falando justamente da islamização da Europa — e reforçando o ridículo disso! O lançamento, evidentemente, foi cancelado. E a tragédia, ou melhor, todo o debate sobre islamização da Europa, com ênfase na França, que se seguiu à tragédia, catapultou Submissão a um patamar muito difícil se alcançar hoje em dia, quando as pessoas abdicaram da literatura para se aterem ao noticiário muitas vezes sangrento: o dos livros mais importantes do século.

O romance é isso: uma grande piada. Ah, eu sei que seu vizinho provavelmente o leu como uma denúncia da decadência da civilização ocidental, um verdadeiro libelo anti-imigração ou anti-islamização. Talvez este seu vizinho tenha até gritando “Deus vult!” depois de ler o romance. Mas essa gravitas, veja bem, está no leitor, não no romance. Que, insisto, é de longe o mais engraçado na obra de um escritor que certamente não se ofenderia se fosse chamado de palhaço.

Em Submissão, a França vai, aos poucos, se submetendo ao Islã (que, não por acaso, significa... “submissão”), uma submissão que só é intelectual na aparência; no fundo, as motivações são econômicas e principalmente sexuais. Houellebecq, com a sutileza de um lugar-comum como aquele do elefante na loja de cristais, mostra intelectuais se convertendo ao islamismo apenas para poderem ter um harém em casa, de preferência com uma mulher mais velha agindo como governanta e uma mais nova (às vezes muito mais nova) para os prazeres da cama. Se houvesse uma de meia-idade para os afazeres domésticos, tanto melhor. Sim, essa é a ideia que Houellebecq faz não só do Islã como principalmente de seus contemporâneos, sobretudo os que se identificam como “de esquerda” ou “progressistas” — você escolhe o termo.

Vale a pena dizer que Submissão em nenhum momento resvala no estudo espiritual do protagonista, chamado (atenção para a falta de sutileza) François. Intelectual de meia-idade, ele não está interessado na teologia islâmica. Se François se converte ao Islã, portanto, é por mero pragmatismo, inclusive dentro da Academia. Mas, insisto, a principal motivação é sexual.

Na época, Submissão foi acusado de ser um panfleto islamofóbico e foi defendido como sendo um alerta, um chamado à cristandade. Não é nem uma coisa nem outra. Não há, em essência, ódio ao Islã no livro. O que há é uma espécie de termo reverencial traduzido em humor, em sátira, em caricatura. A ideia de uma França, que muitos consideram o berço da democracia moderna, com seus ideais de tolerância, inclusive religiosa, subjugada ao Islã é patética demais para ser levada a sério por alguém. E a ideia de ler o livro como uma conclamação a uma nova cruzada despreza toda a história da boa literatura. Não, Submissão não é um panfleto ou libelo; é uma deliciosa piada.

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Centrado no presente
E aqui chegamos ao livro lançado recentemente no Brasil, Serotonina. Um livro que, a levar pela expectativa do autor, vai causar decepção na mesma medida em que Submissão despertou paixões. Não que Serotonina seja um mau livro. Não. Na verdade, tanto ele quanto seu antecessor são os livros mais centrados no presente dentro da obra de Houellebecq. E é nisso que reside sua maior força. Novamente, tem-se a impressão de estar lendo um folhetim contemporâneo sendo escrito numa rede social qualquer. E, no entanto, o que se está lendo é um produto de alguma forma restrito a um tempo, um produto que é passado assim que sai do prelo. O que falta a Serotonina é o outro lado do autor: o humor. O que, por sua vez, acaba ressaltando os demais defeitos aqui já mencionados, como a superficialidade dos personagens.

O lado bom do romance é que ele dialoga com os dois primeiros livros da biografia de Houellebecq, Extensão do Domínio da Luta e Partículas Elementares. Ao primeiro, o autor faz referência ao evocar o enfado camusiano do “Nosso Herói”. É uma espécie de existencialismo tardio e cansado, que se expressa apenas por uma sexualidade exacerbada e um desespero espiritual que curiosamente não busca alívio. Ao segundo, Houellebecq faz referência ressaltando a mentalidade cientificista que, em toda a sua arrogância empírica, busca substituir Deus. O resultado pode render a Houellebecq aclamação da crítica especializada, adjetivos como “refinado” e “sutil” e até o Prêmio Goncourt — se é que você me entende.

Mas, como eu dizia lá no primeiro parágrafo, Houellebecq corre riscos. Parece que gosta de correr riscos. Além de escrever, ele se mete a fazer vídeos, gravar CDs e trocar cartas com outro intelectual. E essa ousadia faz muito bem não só a ele, em termos inclusive financeiros, como também à combalida e cada vez mais irrelevante literatura francesa. Riscos, contudo, pressupõem uns fracassos ao longo do caminho. Fracasso que, sendo a literatura uma via de mão dupla, atinge também os leitores. Ainda assim, é preferível um autor que tente e aqui e ali escorregue e triunfe a um escritor cujo triunfo é uma parede cheia de medalhas de bronze. Michel Houellebecq talvez não tenha construído ainda uma obra perene, mas, pelos próximos anos (ou até quando aquele maldito cigarro permitir), certamente será o piadista mais relevante do debate literário atual.


PAULO POLZONOFF JR. é jornalista, escritor e tradutor. Publicou, entre outros livros, O Homem que Matou Luiz Inácio e Desculpe & Outros Textos que Ninguém Vai Ler.