Capa | Jamil Snege

O anti-herói paranaense

Uma década após sua morte, o escritor e publicitário Jamil Snege é lembrado por seu humor, inteligência e carisma. O autor procurou viver segundo suas próprias regras e enfrentou um câncer de pulmão escrevendo e fumando o quanto pôde

Franco Caldas Fuchs

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Ao deixar um passado com contornos surreais e vários textos que transformaram o seu cotidiano em ficção, o autor curitibano Jamil Snege (1939-2003) também se tornou um grande personagem de si mesmo. Um anti-herói que representou tantos papeis — como o de gênio da publicidade, boêmio, escritor cult, soldado incendiário, intelectual da sociologia, dono de loja de artesanato e pai de família —, mas que não se deixou apanhar exatamente por eles. “É a única maneira de continuar a crescer”, escreveu Snege em um texto endereçado ao filho Daniel, no livro Como eu se fiz por si mesmo.

Após fazer uma série de pesquisas e entrevistar uma centena de amigos, conhecidos e parentes do escritor — no que resultou em uma biografia inédita sobre Snege —, este repórter se deparou também com múltiplas faces de um homem eternamente inquieto.

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Peripécias juvenis
Para desgosto do pai, Antônio Snege, tipógrafo de origem síria, líder de terreiro e senhor dos mais ordeiros, desde garoto “maus espíritos” impeliram Jamil para a anarquia e a literatura. Amigos de infância lembram do Turco, como era chamado, com livros debaixo do braço e sempre aprontando pelo Água Verde, bairro curitibano onde se criou. “Ele era muito safado”, resume a irmã Sheila, cinco anos mais nova, ao se recordar das estripulias que deixavam a mãe, Anita Bassani, de cabelo em pé. “Ele era o oposto do meu pai. Era totalmente contra o sistema da época. Não trabalhava, não se adaptava aos horários, era a ovelha negra da família”, completa Iberê, o irmão caçula.

Como pretexto para aproveitar a boemia curitibana, aos 16 anos, Snege começou a escrever em colunas sociais. E, por chegar de madrugada, irritava e até confundia o pai. Um dia, Antônio levantou às 6h e encontrou Jamil arrumado, tomando café. “Agora sim! Levantando cedo e indo trabalhar. É isso que você tem que fazer sempre!”, disse o pai. Jamil, porém, tinha acabado de chegar em casa.

À esquerda, Jamil Snege, ao lado de um amigo
não identificado. Diante deles, um carnaval
curitibano e todas as suas possibilidades.

Mas, de tudo o que aprontou na juventude, o maior choque para a família foi causado pela “grande cagada”, descrita em Como seu se fiz por si mesmo. Aos 18 anos, prestes a se formar como oficial do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), provocou um incêndio em um treinamento militar. E isso por pura brincadeira, com a brasa do inseparável cigarro. “Ele deixou até a última hora para contar que tinha sido expulso do CPOR. A farda estava pronta para a formatura”, lembra Iberê.

"Jamil era uma pessoa muito inteligente e das mais engraçadas. Tinha uma capacidade incrível de imitar certas pessoas. Especialmente as mais próximas. Talvez a mim deve ter imitado para outros amigos. Raras vezes ri tanto na minha vida como em muitas com ele. O jeito dele contar as coisas... Ele se soltava. Era um ator, poderia ter feito teatro.” Nêgo Pessôa, jornalista.


Retrato de um Tempo sujo
Em 1960, para não ficar mais um ano como soldado em Curitiba, Jamil optou por cumprir o serviço militar como paraquedista no Rio de Janeiro. Lá, aproveitou ainda para estagiar como jornalista na Tribuna da Imprensa — veículo que, anos mais tarde, publicaria alguns de seus contos em seu suplemento literário.
Sobre a dureza do treinamento militar no Rio, diria numa entrevista em 1998: “Passei uns oito meses assim: abrindo valeta, fazendo todas essas tarefas. Aquilo foi bom porque tirou qualquer nascente arrogância que eu pudesse ter”.

Em 1961, retornou a Curitiba. E já nessa década era respeitado nas rodas intelectuais — também frequentadas por Dalton Trevisan — que se formavam em torno da Boca Maldita. Em 1965, participou da antologia Contos de repente e, em 1968, publicou a novela Tempo sujo: retrato da juventude da época, tratando de tabus como virgindade, casamento e revolução. 

"Quando você levava um texto para o Jamil, ele lia, dava sugestão, arrumava. E sempre com uma delicadeza. Era o único momento em que ele era delicado, porque, de resto, era mordaz. Até o ponto em que cheguei para ele e disse: ‘A hora que você usar dessa mordacidade comigo a nossa amizade acaba’. E ele nunca mais fez gracinha. Fazia pelas costas, na verdade. Mas era uma pessoa absolutamente dedicada aos amigos.” Wilson Bueno (1949-2010), escritor.

Por ter alguns personagens inspirados em pessoas reais (o livro, aliás, é dedicado aos personagens — “que me pouparam o trabalho de inventá-los”), a obra causou alvoroço e teve a edição esgotada rapidamente. “Jamil dizia que moças de boa família não podiam ler aquilo. Minha mãe, inclusive, depois rasgou o meu livro, dizendo que não queria aquele tipo de coisa dentro de casa!”, conta Luiza Helena, ex-mulher e mãe de Daniel Snege.

É curioso lembrar que, antes de Luiza, Jamil namorou a poeta Alice Ruiz, ex-mulher de Paulo Leminski. Tal fato contribuiu para que ele e Leminski se colocassem a uma certa distância. “Eles tinham temperamentos distintos. O Turco não bebia, só fumava cigarro. Enquanto o Polaco usava todos os aditivos. E, por causa da Alice, era mais o Leminski que tinha uma certa rusga com o Jamil. Mas o Turco tinha uma generosidade tão grande que, quando saiu o Catatau, ele foi o primeiro a resenhar. E com um texto derramado ao Leminski”, conta o publicitário e escritor Ernani Buchmann, amigo dos dois.

Uma banana para a publicidade
A partir da década de 1970, já formado em Sociologia pela Faculdade Católica, Snege atuaria mais intensamente como redator publicitário. Nas agências era conhecido pelo talento e pela irreverência. Fugia até pela janela para escapar de reuniões chatas e escandalizava de varias formas. “Ele adorava azucrinar a moça do cafezinho e jogava um rolo de papel higiênico dentro da jarra de chá. Jamil também não gostava que apresentássemos a agência aos clientes, porque ele se sentia um bicho no zoológico. Uma vez, abri a porta para apresentá-lo e ele imitou um macaco”, lembra, aos risos, o publicitário José Dionísio Rodrigues, chefe de Snege na agência Opus. 

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Durante uma viagem à Argentina, ao lado de Vera Lúcia Bachmann, companheira com quem viveu durante um terço de sua vida.

"Acho que era difícil, para o Jamil, a contradição de ser um homem de espírito crítico, de aguçado interesse intelectual por tudo, mas com uma veia espiritual forte. Ele era respeitoso com o sobrenatural e me falava de visões que tinha. No fundo, era um místico reprimido. Quando escreveu o livro Senhor, que é uma profissão de fé e de dúvida, ele estava em uma fase muito espiritualizada.” Aroldo Murá G. Haygert, jornalista.

O Turco era indisciplinado, mas muito premiado. Basta dizer que, no Prêmio Colunistas, que premiava os melhores da década, foi autor do Melhor Anúncio (pela peça intitulada “Propaganda em Tempos Bicudos”), da Melhor Campanha (por Kid Malu), e do Melhor Comercial (por “Copo e Lâmpada”).

Ao adquirir, em 1983, a agência Beta — gerida também pela última esposa, Vera Lúcia Bachmann, mãe de Jean Snege —, Jamil continuou se destacando e venceu, em 1987, o Prêmio Profissionais do Ano, concedido pela Rede Globo. Por tudo isso, muitos apontam que ele poderia ter enriquecido com a publicidade, especialmente na década de 1980.

O Turco, porém, nunca pareceu almejar isso.

Em uma entrevista, em 1996, afirmou: “Jamais me considerei um empresário da propaganda. Seleciono os trabalhos pelo prazer que eles podem proporcionar”. A possibilidade de mandar uma “banana” para esse universo também era algo que passava constantemente por sua cabeça.

Em 1976, ele até tentou se afastar da área e montou uma loja de artesanato na Travessa Jesuíno Marcondes, chamada Cordel. O empreendimento foi aberto com o amigo Polaco Victor — que na década de 1990 lhe construiu uma cabana rústica em Santa Felicidade. Snege, porém, não se empolgou com a vida de comerciante. Por varar madrugadas, não acordava cedo e muitas vezes a loja era aberta por amigos ou pela então companheira Graça Andrade, com quem viveu por 10 anos. Mais do que retorno financeiro, em um ano de existência, a loja rendeu histórias pitorescas.

Ousadia e humor no marketing político 

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Pausa durante a gravação de um comercial para a extinta loja Malucelli da Visconde. O Turco é o terceiro da direita para a esquerda, e está ao lado do filho Daniel, autor de algumas das imagens que ilustram esta edição.

Ao chegar aos 50 anos, Snege se concentrou no marketing político. “Na publicidade, o produto é inerte na tua frente. Com o candidato você é capaz de fazer performances diante da coisa política”, disse ele em uma entrevista na década de 1990. De fato, as performances que arrancou de seus clientes são memoráveis. Fez, por exemplo, Tony Garcia aparecer em comerciais lutando boxe e até caçando vampiros. Como resultado, Tony, até então desconhecido, terminou em segundo lugar na eleição para o senado em 1990.
Quatro anos depois, graças às ideias de Snege, Rosemeri Kredens também virou celebridade em sua improvável candidatura ao governo do Estado, em 1994. No horário eleitoral, vestiu-se de noiva, descascou batatas e discursou contra o machismo maquiada com um olho roxo. Notícias sobre ela saíram em revistas como Veja e Isto é, assim como no Jornal Nacional e no Fantástico. “O sucesso foi tão grande, que as pessoas me paravam na rua e perguntavam: qual é a surpresa do programa de hoje?”, conta Rosemeri. Do período em que frequentou a Beta, que foi ponto de encontro de escritores, políticos e aspirantes a cargos públicos, ela lembra do Turco calmo e zombeteiro, entre cigarros e cafezinhos, recortando santinhos de candidatos. Cabelos, bocas e olhos eram trocados por ele, formando novas “criaturas” expostas no tampo da sua mesa de vidro.

Jamil condensava uma maneira curitibana de escrever e ver o mundo. A sua ironia sarcástica, a sua forma de heroicizar as misérias e o seu lirismo negativista influenciaram a minha maneira de escrever. Ele era um grande gozador, não levava nenhuma de nossas pretensões a sério, e isso faz um bem danado para quem quer se dedicar à literatura. (...) Depois do tratamento contra o câncer, quando perdeu a barba que tanto o orgulhava, e começou a nascer uma barba rala e espetada, ele se autoapelidou de Capitão Chuchu. Ele brincou com o seu fim.” Miguel Sanches Neto, escritor.


Literatura diante do abismo

Com onze livros publicados — por conta própria ou por editoras locais —, ao longo de sua carreira literária, Snege foi reconhecido por vários críticos, como José Castello e André Seffrin, e por outros escritores nacionais como Moacyr Scliar, Hilda Hilst e Cristovão Tezza — de quem foi “guru”. Mas, por opção, Snege nunca foi atrás das grandes editoras, que eventualmente poderiam lhe dar condição de largar a publicidade. Apesar disso, não escondia o sonho de, um dia, viver apenas de literatura. 

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O mestre da ficção, artista que soube viver e rir da vida: “Havia um rei, havia um reino; eu me errei.”

O desejo nunca se concretizou.

Mas Jamil continuou escrevendo, até mesmo durante a luta contra um câncer de pulmão, descoberto em 2002. No dia 7 de julho daquele ano, os leitores das suas crônicas na Gazeta do Povo souberam que ele estava com um “alien dentro do peito”. “Ainda não nos encaramos como inimigos, mas paira sobre nós a mútua suspeita de que um tentará destruir o outro”, escreveu Snege, no primeiro de uma série de textos impactantes sobre o assunto.

Mesmo durante a quimioterapia, não deixou totalmente de fumar, e continuou relatando com sangue frio e sarcasmo a situação que enfrentava. Ao perder a tradicional barba, na crônica “A Metamorfose”, Snege se comparou a um “bicho da goiaba”. “Apenas minhas sobrancelhas ainda sombreiam o olhar de espanto com que me miro”, escreveu.

"Eu ia na Beta e ficava parado, tentando absorver tudo o que podia. Lembro do Jamil pensando e cofiando o bigode devagar, logo acima do lábio superior, com a ponta de uma lapiseira. Então alguém buzinava na frente da agência e ele corria até a janela, serelepe e animado. Parecia um personagem engraçado de filme. (...) Lembro dele me dizendo: ‘Tem que ler Harvey Cox: A cidade do homem. Gabriel García Márquez: Cem Anos de Solidão. Você só vai ser na vida aquilo que você lê, Marcelo!’.” Marcelo Almeida, engenheiro

“Embora estivesse apreensivo, ele conseguia se distanciar e tratar do pior dos infortúnios com humor e distanciamento. Ele sempre tratou tudo dessa forma e detestava a autocomiseração”, lembra o escritor e amigo Fábio Campana. Pouco antes da sua morte, em 16 de maio de 2003, Snege disse a Fábio que desejava ter apenas mais cinco anos para terminar algumas obras. Entre elas, O grande mar redondo, romance sobre Antônio Vieira, personagem histórico paranaense.

 

Reedição das obras de Snege é incerta

Franco Fuchs

Os leitores de Jamil Snege precisarão garimpar em sebos e bibliotecas para encontrar livros do autor, esgotados há muito tempo nas livrarias. Após a morte de Snege, os herdeiros ainda não chegaram a um acordo sobre o rumo das obras. Detentores dos direitos autorais, juntamente com a viúva Vera Lúcia Bachmann, os irmãos Jean e Daniel Snege manifestam o desejo de relançar os livros. Porém ainda não comentam sobre datas ou editoras. “Todos queremos que os livros voltem a circular. É uma obra de imensa qualidade e inventividade, que tem seu lugar entre os grandes da literatura paranaense e, por que não, nacional”, afirma Jean. “Os 10 anos de morte, sem publicações, são emblemáticos. Está mais do que na hora de fazer uma reedição à altura de um escritor como o Jamil”, completa Daniel. Os últimos livros de Snege, Os Verões da grande leitoa branca e Como tornar-se invisível em Curitiba, foram lançados em 2000. Uma reedição da coletânea O jardim, a tempestade, revista e ampliada pelo autor, foi impressa em 2004, pela Travessa dos Editores, mas não entrou no mercado. Em sebos, alguns títulos custam R$ 300. Com autógrafo, o valor da obra ultrapassa R$ 500.