Capa | Jamil Snege

Jamil Snege ou escrever bem não tem contraindicações

Ernani Ssó

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Esses tempos recebi um livro pelo correio com uma ficha que eu deveria preencher para ser o feliz comprador de mais duzentos e cinquenta exemplares. Digo feliz porque a sugestão era que eu doasse esses duzentos e cinquenta exemplares para os amigos. Uma pessoa com duzentos e cinquenta amigos tem de ser feliz, não? Ter duzentos e cinquenta amigos deve ser melhor do que ter um harém. Infelizmente para mim e para o autor, eu não tenho tantos amigos nem a grana necessária para manter em dia a leitura deles, sem falar que não consegui ultrapassar a primeira página do livro, mesmo impressionado com o quilo de resenhas favoráveis que o acompanhava. Esse foi o caso mais grave que sofri na categoria Livro Recebido Pelo Correio.

Não estou fazendo gracinha pela gracinha, não. É que um dia me aconteceu o contrário: recebi pelo correio um livro de Jamil Snege. Eu jamais tinha ouvido falar dele, o que não quer dizer nada, dado o nível da minha desinformação. Agora, como ele tinha ouvido falar de mim, um verdadeiro eremita? Suspeitei de Paulo Hecker Filho, porque o Hecker me levava mais a sério do que mamãe e era do tipo capaz de comprar duzentos e cinquenta exemplares de um livro de que tinha gostado e mandar até para os inimigos, que não eram poucos, por sinal. Mas o diabo é que eu mesmo fiquei com vontade de adquirir um pacote do Como eu se fiz por si mesmo (Travessa dos Editores, 1994). Fiquei na vontade. Pior, preguiçoso e desorganizado, fui incapaz de escrever um bilhetinho para Snege dizendo que tinha rido e chorado como quase nunca. Agora acabo de ler os contos d’Os verões da grande leitoa branca (Travessa dos Editores, 2000) e a novela Viver é prejudicial à saúde (edição do autor, 1998) e resolvi tomar vergonha na cara.

Dizer que Jamil Snege é um escritor marginal não explica grande coisa, porque no Brasil, fora o Paulo Coelho e mais uns dois ou três, todo escritor é marginal. Muitos ainda esperneiam, procuram editores prestigiosos, buscam divulgação ou, suprema humilhação, um reconhecimento oficial, tipo edições quase póstumas por Secretarias de Cultura e cadeira em academias, às vezes até municipais, que Alá nos proteja. Jamil Snege parece não ter dado bola pra isso tudo desde sempre. Vi apenas um comentário sobre ele, na revista Blau, quando saiu Viver é prejudicial à saúde, se não contar as frases de gente como Moacyr Scliar e Leo Gilson Ribeiro na orelha de Como eu se fiz. Como autor marginal não tem sorte, Jamil Snege caiu nas mãos de uma estudante de Letras ou Jornalismo que demonstrou, de modo brilhante, que você não pode ser crítico se ainda está em processo de alfabetização.

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“Perderam-se, no espaço compreendido entre a literatura e a publicidade, alguns anos muito preciosos”, escreveu Snege, em tom de brincadeira, sobre o seu próprio destino.

Jamil Snege ganhou a vida como publicitário, em Curitiba. Isso está no Como eu si fiz por si mesmo, que reúne textos autobiográficos, como indica ironicamente o título, que vão da adolescência à vida profissional. Claro que esses textos podem ser ficcionais, ou sobre uma realidade turbinada, digamos, mas isso não interessa: o que interessa é o personagem que emerge desses textos. Não, não se trata de cara — um galã e gênio — ou coroa, como podia se esperar depois do título e da capa do livro, onde um chimpanzé escreve a máquina: o famoso veja-como-eu-era-ridículo. O Jamil do retrato é uma pessoa, só isso, essa coisa extremamente difícil de se materializar num texto, autobiográfico ou não. Há humor, sim, há ironia, mas humor e ironia não atrapalham nunca a emoção, acho até que a acentuam, nos melhores momentos, como acontece com os grandes humoristas.

Como eu se fiz por si mesmo não tem enredo, quer dizer, Jamil Snege não se apresenta com começo, meio e fim, não tenta uma teoria sobre si mesmo que una, explique e de quebra justifique o que fez ou deixou de fazer. Claro, todos temos uma teoria sobre nós e o mundo, ou até mesmo sobre o outro, mas se somos honestos, ou melhor, se temos coragem suficiente para encarar o bicho no olho, sabemos que não podemos confiar nela, que as teorias nos deixam na mão nos piores momentos, feito os isqueiros e nossos melhores amigos, como dizia o Barão de Itararé. As teorias são a sombra do fotógrafo sobre o objeto fotografado, me entende? É bem possível que essa coragem e desconfiança estejam por trás do livro de Jamil. A opção dele — recolher alguns momentos antes que o passado os aniquile, como uma pessoa que salva alguns pertences ao abandonar a casa que a enchente invade — pode parecer modesta, para um biógrafo consciencioso, um político ou metafísico que nos agarra pelo colarinho exigindo sentido, mas deu num livro extremamente vivo, um negócio raro entre biógrafos, políticos ou metafísicos. Ficou muita coisa para trás, a gente sabe, vai ver o mais importante ficou para trás e de propósito, mas e daí?

Não é assim com todo mundo?

“Viver é prejudicial à saúde porque vivendo a gente fica barrigudo e com as pernas finas, a gente arruma um monte de doenças ou pelo menos a possibilidade e o medo de adoecer, a gente fica indiferente a quem amou, a gente fracassa profissionalmente, a gente deseja mulheres que são cada vez mais impossíveis. Pior, muito pior: a gente não faz mais sentido”.

Fiquei me perguntando o que Jamil Snege faria na ficção, porque tem autores que rendem mais falando diretamente da própria vida. Não é o caso, vide Os verões da grande leitoa branca, mesmo que alguns contos tenham cheiro autobiográfico, como os excelentes “Sob um céu de tempestade” ou “Em busca de Rostropovich”. Os verões é uma antologia, organizada pelo Miguel Sanches Neto, reunindo contos de A Mulher-aranha (1972), de Ficção onívora (1978), de O jardim, a tempestade (1989), de Confabulário (1998), mais alguns inéditos. Contos curtos e curtíssimos, texto rápido, fluente, para se ler numa sentada. O humor está presente de novo, negro, absurdo ou melancólico, às vezes misturados. Fecha-se o volume e fica a sensação de que houve um engano, de que perdemos alguma coisa, melhor começar tudo de novo, mais devagar, com mais atenção. A facilidade e a leveza de Jamil Snege são muito enganosas. Muito trouxa vai pensar que tomou um refresco mesmo quando sentir os efeitos da cicuta.

Há em “Sob um céu de tempestade” um clima de agonia que nasce sem ênfase, sem adjetivos e exclamações tipo Edgar Allan Poe. Trata-se de um sonho e tudo é contado de modo direto. A lógica do sonho, estranha como deve ser mas sem jamais deixar de ser lógica como também deve ser, cumpre-se linha a linha, sem uma cena falsa, ou mesmo forçada. Nem a simetria parece forçada. A simetria é parte desse tipo de pesadelo, pelo menos na literatura.

No conto “Em busca de Rostropovich” Jamil nos apresenta um homem culto, educado, brincando de ser europeu, que acaba se envolvendo num assalto. Parece uma ironia fácil, mas a forma tranquila com que Jamil nos dá os sentimentos do homem, a situação absolutamente humana do assalto, com um toque de ridículo que torna tudo mais melancólico e sinistro, não é pra qualquer um, não. Este mesmo toque — digo de humanidade, não de ridículo — aparece no final de um conto muito diferente como “Os verões da grande leitoa branca”, que nas mãos de muitos facilmente poderia não ultrapassar o nível da sacanagem, ou no máximo ficar no deboche picaresco. Como diz Miguel Sanches Neto na orelha, precisamos ter cuidado porque o “autor bate forte”. Mas o autor sabe que bate em gente, não num saco de areia, e não tem prazer nenhum com o nocaute. Daí que precisamos ter mais cuidado ainda.

Seria divertido comentar outros contos, como “Sorriso nos lábios”, “O ciclista”, “No chão sou mais eu”, por exemplo, mas precisamos saber por que motivo viver é prejudicial à saúde. Agora, não posso deixar de notar a tremenda imagem que Jamil cria com “Os poderes de Adam”. Um homem pensa, enquanto espera uma encomenda de Adam, num bar fedorento. Esse homem promete várias mortes, lembra outras e se mostra submisso a Adam. Mas quem é Adam? Não sabemos, talvez um chefão do submundo ou uma espécie de deus. Segundo o homem, Adam não passa de um monte de órgãos e vísceras boiando num colchão d’água. Pode-se ver o coração de Adam, o sangue circulando, o lençol sob o corpo. É totalmente indefeso. Vive deitado. Para matá-lo, bastaria passar pelas duas amas que cuidam dele e furar a fina película. Mas o homem — um homem ridículo, balofo, com olhos como feijões, que as vítimas só levam a sério quando é tarde demais — continua à espera, maquinando seus crimes.

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Daniel Snege, Jamil e Vera Lúcia Bachmann durante uma viagem pelo Sul do mundo, entre Bariloche e Buenos Aires na década de 1990.

Claro, viver é prejudicial à saúde, ou no fim não morremos todos? Provavelmente não é um bom título — agora, lida a novela, não tem como pensar em outro mais adequado. Viver é prejudicial à saúde porque vivendo a gente fica barrigudo e com as pernas finas, a gente arruma um monte de doenças ou pelo menos a possibilidade e o medo de adoecer, a gente fica indiferente a quem amou, a gente fracassa profissionalmente, a gente deseja mulheres que são cada vez mais impossíveis. Pior, muito pior: a gente não faz mais sentido. Um quadro baixo astral, sim senhor, só que outra vez Jamil Snege entra com tudo: humor, ironia — viver é prejudicial à saúde mas, pelo menos nesse caso, não embotou a inteligência, nem a sensibilidade e a lucidez. A saída, como se receita há séculos, é o amor. Não precisa suspirar, não se trata de novela das seis, nem de livro de autoajuda. Aqui o amor, apesar da mágica de sempre, vem sem ilusão, sem deslumbramento: o amor aqui é coisa de gente grande, o sujeito continua com a barriga do mesmo tamanho, a mulher puxando de uma perna e com varizes. Não há como escapar do amor. Estamos condenados ao amor. Tenho dito.

Não, ainda não. Essa novela tem um problema sério: é corroída por comentários, por opiniões. Grande parte dela é crônica. Em vez de fatos, papos. Só me dei conta disso na segunda leitura. Sinal de que o papo era bom. Agora sim tenho dito.

Não, de novo não. Cabe uma reflexão final: por que Jamil Snege não está na lista dos mais vendidos? Por que os jornais o ignoram? Por que as livrarias não o expõem? As livrarias só expõem o que a imprensa comenta e a imprensa só comenta — o que é mesmo que a imprensa comenta? O leilão da virgindade da cantora adolescente? Os contos eróticos da atriz? O ego e os ponto-e-vírgulas errados de Fernanda Young? Patrícia Melo, que não conhece pivete nem de esmola, como demonstra tintim por tintim em Inferno? A imprensa é pau-mandado do mundo dos espetáculos.

Mas os editores, os grandes editores, hein? Que eles tenham medo de publicar autores sem grandes chances no mercado, entende-se. Chia-se mas se entende. Agora, que continuem indiferentes aos que têm todas as chances de emplacar me parece um caso sério, muito sério. Alguém deve estar na profissão errada em algum lugar nessa corrente pra frente.


Ernani Ssó nasceu em Bom Jesus (RS). É autor da série infantojuvenil No escuro e do romance O diabo a quatro. Vive em Porto Alegre (RS). 

Ilustração: Rafael Sica