Capa | Irvine Welsh

Da farra da resistência ao afeto da subversão 

O jornalista Bruno Cobalchini Mattos analisa a obra do polêmico escritor escocês a partir do modelo social estabelecido no Reino Unido nos anos 1970 e intensificado no governo da primeira-ministra Margaret Thatcher 

             
                                                   Theo Szczepanski
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O que aconteceu com nosso sonho de liberdade? É este o subtítulo do documentário The trap [A armadilha], dirigido por Adam Curtis e produzido pela rede britânica BBC em 2007. Dividida em três episódios, a série televisiva investiga a filosofia por trás de um modelo social que, no Reino Unido, atingiu seu ápice a partir do governo da primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013). Logo de partida, o filme aponta que “nosso governo [britânico] estabeleceu como meta criar um mundo onde estaríamos livres do controle das velhas elites e burocracias. Um novo mundo onde seríamos livres para escolher nossas vidas, sem ficarmos presos a nossa renda e classe social ou a papéis pré-determinados”. 

Este novo modelo social partia do princípio de que cada cidadão buscava apenas o benefício próprio. A noção de “dever social” era vista como mera hipocrisia, uma máscara usada pelos indivíduos na busca por seus próprios objetivos. Nesse contexto, reformas foram feitas para que o Estado abdicasse de qualquer tipo de intervenção direta na sociedade; seu papel passou a ser o de fiscal de metas, cobrando produtividade de seus funcionários, estabelecendo metas de punição e recompensa conforme o seu desempenho e atendo-se a índices numéricos capazes de mapear setores como saúde, educação e segurança. A ação política, considerada ideologicamente ultrapassada, deu espaço ao mercado e ao consumo — estes sim vistos como ferramentas capazes de garantir a liberdade de cada indivíduo. 

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A nova filosofia de gestão se espalhou pela maioria dos países do mundo ocidental, influenciando diretamente seus cenários políticos. No entanto, o autor do documentário (conforme indica o próprio título) defende que o resultado verificado após duas décadas era o oposto do esperado. Ao invés de maior liberdade, verificou-se um controle progressivo do Estado sobre seus cidadãos, que deviam se adequar às metas propostas a qualquer custo. O mesmo modelo que propunha libertar os indivíduos tornara- se extremamente repressivo quando estes não correspondiam ao que se esperava deles, fosse nas notas escolares, na estabilidade no emprego ou no número de passagens pela polícia. 

É aí que entra a obra do escritor e roteirista escocês Irvine Welsh. A crise social retratada em The trap é o pano de fundo de seus trabalhos mais conhecidos (a trilogia de romances composta por Skagboys, Trainspotting e Pornô), e a crítica às bases desse sistema é uma constante em todos os seus livros. É difícil pensar em um retrato mais preciso das contradições apontadas em The trap do que esta citação de Mark Renton, um dos muitos narradores de Trainspotting: 

“A sociedade inventa uma intricada lógica falsa para absorver e mudar as pessoas que têm um comportamento fora do normal. Suponhamos que eu conheça todos os prós e contras, que saiba que terei uma vida curta, que tenho uma cabeça no lugar, etc., etc., mas que ainda assim queira usar heroína. Eles não vão deixar. Não vão deixar porque isso é visto como um sinal de seu próprio fracasso. O fato de você simplesmente escolher rejeitar o que eles oferecem. Nos escolha. Escolha a vida. Escolha pagamentos de hipoteca. Escolha máquinas de lavar. Escolha carros. Escolha ficar num sofá assistindo a programas de auditório que atrofiam a mente e esmagam o espírito, enfiando uma merda de junk food goela abaixo. Escolha apodrecer mijando e se cagando em casa, um constrangimento total pros pirralhos egoístas e fudidos que você gerou. Escolha a vida. Bem, eu escolho não escolher a vida. Se os viados não conseguem lidar com isso, a porra do problema é deles.” 

Claro que não é coincidência que Welsh tenha nascido em Edimburgo em 1957 e ingressado na vida adulta justamente naquele período tão conturbado da história política do Reino Unido. Em muitas entrevistas, o escritor ressaltou que o ambiente assustador e violento da trilogia iniciada em Trainspotting baseia-se amplamente na realidade que ele vivenciou durante a juventude. Nos livros, o que se vê
é um grupo de amigos com idade para ingressar no mercado de trabalho mas que, ao invés disso, passa seus dias brigando em bares, consumindo heroína e outras drogas, buscando maneiras de burlar o seguro desemprego e planejando crimes das mais diversas naturezas para arranjar algum dinheiro. Não raro, passam a perna uns nos outros; sua afinidade parece vir apenas de sua condição compartilhada de rejeito social. São, em resumo, os cidadãos menos distintos do Reino Unido. 

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Welsh, que esteve na 14ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), lê trecho de seu mais
recente livro publicado no Brasil, A vida sexual das gêmeas siamesas

É importante frisar que os romances de Welsh estão longe de ser panfletários. São radicalmente críticos, mas não do tipo que oferece alternativas ou respostas fáceis. Pelo contrário: a maioria de suas obras apresenta múltiplos narradores com pontos de vista antagônicos. São mosaicos anárquicos de vozes (às vezes, mais de uma dezena) sem uma identificação explícita de quem está falando. Este é o grande trunfo estético do autor: após determinado ponto de cada romance, é possível reconhecer de imediato os narradores- -protagonistas por seu ritmo, seu léxico, sua dicção — características que servem também para ressaltar a idiossincrasia de cada um dos personagens. 

Assim, mesmo nos discursos mais violentos e sarcásticos (na superfície, a literatura de Welsh costuma ser engraçadíssima), o leitor compreende pouco a pouco as motivações por trás do ódio  manifesto, que invariavelmente remete a um sentimento difuso de inadequação dos narradores ao ambiente onde vivem. Crime (publicado em 2008, quinze anos após Trainspotting) talvez represente o ápice dessa experiência de leitura. Por ser narrado em segunda pessoa, faz com que o leitor partilhe da angústia de Raymond Lennox, o detetive-inspetor à beira da depressão que foge para a Flórida em uma tentativa de escapar da forte carga emocional de sua rotina de trabalho. Como acontece com os protagonistas de Trainspotting, a incapacidade de enfrentar esta realidade acaba levando a um comportamento autodestrutivo, do qual ele só consegue se
esquivar ao resgatar uma garota de dez anos de uma tentativa de estupro. 

A essa altura, é possível elencar algumas constantes na obra de Welsh: vozes originais, personagens egoístas e desesperados, rejeição a uma sociedade massificadora. Passados mais de 20 anos de carreira, o escocês continua explorando estas mesmas temáticas. Em seu livro mais recente, A vida sexual das gêmeas siamesas, ele revela uma capacidade de se reinventar sem, contudo, abrir mão das características que dão coesão à sua obra. 

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No filme Trainspotting, Welsh atua como o traficante Mikey Forrester.


O romance tem como protagonista Lucy Brennan, uma personal trainer cuja vida é transformada quando um homem a pé corta a frente de seu carro. Lucy salta do carro e vê que o homem foge de um atirador. Ela parte para cima do agressor e o imobiliza. A ação é filmada por Lena Sorenson, uma artista plástica que também estava no local, e o vídeo acaba nos noticiários. Após o episódio, Lena (que está acima do peso ideal) decide ter aulas com Lucy e a relação das duas acaba se aprofundando. Faces opostas da mesma moeda, Lucy e Lena são personagens tipicamente welshianas. A primeira mede o mundo em números, personificando o sistema de coerção que em outros livros do autor cabe ao governo. Conta calorias, séries de treino, minutos de exercício aeróbico. Esquece o nome de outras pessoas, mas jamais sua altura ou peso. Reprime alunos que falham em cumprir suas metas, sem jamais inserir seus problemas pessoais na equação. Lena, por sua vez, é o arquétipo do indivíduo desesperado por ser incapaz de se adequar a esses números. O fato de ser uma artista plástica de grande aceitação no mercado (e, portanto, rica) não é suficiente para compensar a rejeição parcial de sua família e as frustrações de sua vida pessoal. 

Aos olhos de Lucy, todos os problemas de Lena se resumem a certa frouxidão, que também a impede de perder peso. Sua irritação cresce com o passar das semanas, até que, movida por um ímpeto ensandecido, decide manter a artista em cativeiro até que perca 30 quilos. Acorrenta-a em um apartamento vazio repleto de equipamentos de ginástica e controla rigorosamente a sua alimentação. Além dos exercícios, a única distração de Lena passa a ser a televisão, onde o caso de gêmeas siamesas (aquelas do título) em conflito por causa do namorado de uma delas é exposto em programas de variedades. 

O caso das gêmeas surge como metáfora última para a falência de um modelo guiado pelo individualismo. Uma deseja sair com o namorado, a outra não. Não havendo qualquer tipo de acordo ou concessão, impõem-se limitações de ordem física, e a única solução aparente é uma cirurgia de separação da qual é praticamente impossível que as duas saiam vivas. Lena demonstra uma angústia crescente conforme o caso se desenrola em cadeia nacional, e o paralelo entre a situação das irmãs e a relação de interdependência que ela estabeleceu com a personal trainer é inevitável. 

Enquanto isso, fora do apartamento, Lucy responde e-mails no lugar de Lena, expondo aos pais de sua prisioneira mágoas alimentadas secretamente durante anos (os conflitos são destrinchados em trechos do diário da artista, ao qual o leitor tem acesso ente um capítulo e outro). É um tratamento de choque tão extremo quanto aquele que impõe sobre a forma física de Sorenson. Lucy também descobre o impacto que a conduta perversa de um ex-namorado teve sobre a autoestima de Lena — a história por trás de seus números inadequados. 

Apesar da postura que exibe em público, Lucy também guarda esqueletos no armário. Sua obsessão pela boa forma tem origem em um episódio traumático de sua adolescência, potencializado por uma relação emocional conturbada com o seu pai. Em um confronto final entre as duas protagonistas, todas essas informações enfim vêm à tona, e as duas acabam se tornando mais próximas do que jamais poderiam ter imaginado. Igualmente surpreendente é o desfecho do caso das gêmeas: as duas decidem não se submeter à cirurgia por medo de perderem uma à outra.

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O autor no Leith, zona portuária de Edimburgo onde se passam várias de suas histórias.


Um final feliz é exceção na literatura de Welsh, mas as páginas finais de A vida sexual das gêmeas siamesas corroboram a crítica social que dá coesão à sua obra. O encerramento é diferente porque a ação dos personagens é distinta. O documentário The trap sugeria que a ideologia predominante no mundo ocidental a partir dos anos 1980 possui uma grande falha: baseando-se na “Teoria dos jogos”, aposta no egoísmo de todos os cidadãos, sem levar em conta experimentos práticos que revelaram uma tendência dos indivíduos de colaborarem entre si. Em parte isso se devia ao clima político da Guerra Fria, em parte ao fato de que John Nash, o criador da teoria, sofria de esquizofrenia paranoide no período em que a elaborou. 

Com a cooperação descartada, o conceito de liberdade era compreendido como uma espécie de hedonismo, um mundo onde cada um faria somente o que lhe aprouvesse. Na literatura de Welsh, quando isso acontece, os resultados são os mais catastróficos. Por outro lado, em A vida sexual das gêmeas siamesas, esse modus operandi é superado através do diálogo e do esforço conjunto. Não por acaso, ao fim do livro, Lucy já não mede os outros pela ótica dos números; sua fala muda, passando a se basear nas potencialidades das narrativas pessoais. Essa mudança é uma forma de subversão, de resistência através da empatia; o mais próximo de uma “lição” que se pode extrair da obra do autor. Afinal, em meio a um rol de personagens marcantes por sua irreverência, imprudência e desprendimento, é muito significativo que o modelo mais sólido de liberdade surja justamente na vida daqueles personagens que se sentem melhor na presença de outros.


Escrevendo de ouvido


Bruno Cobalchini Mattos

Os contos e romances de Welsh são marcados pela originalidade das vozes de seus personagens. O escocês tem uma capacidade extraordinária de reproduzir o ritmo, as gírias e as construções fonéticas das ruas, sejam estas do Leith, bairro proletário de Edimburgo onde cresceu, das regiões mais abastadas da capital escocesa ou de Miami, onde reside atualmente. A abordagem casa perfeitamente com as referências à cultura de massa (filmes, música popular, apresentadores de televisão) que abundam em suas páginas. Irvine Welsh é um autor pop e não tem nenhuma vergonha de sê-lo. 

Durante a última Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), mediei uma mesa que contou com a participação do escocês e de Daniel Pellizzari, também escritor e um de seus tradutores no Brasil. Welsh se mostrou muito mais descontraído nessa conversa, que integrou a programação paralela da Casa Rocco, do que na mesa oficial da FLIP, realizada no dia anterior. (Mais tarde, entre caipirinhas em uma mesa de bar, revelou que isso se devia a certo mal-estar com a formalidade do evento. “Não estou acostumado. Prefiro ter as pessoas mais próximas, conversar com o público, fazer piadas, falar palavrões.”) 

Na conversa, o autor observou que esse modo de escrever surgiu de forma bastante natural. Os trejeitos na fala são os mesmos de seus amigos de Edimburgo, e também dele próprio. Ele ressaltou que a linguagem hermética do livro não é estranha apenas ao público brasileiro. “Na semana passada, eu estava em Edimburgo com meus amigos, e são tantas gírias, tantas expressões, que quase entendo mais vocês falando português do que eles quando estão no bar”, brincou. 

As bandas, músicos e canções citadas também são os mesmos que ele escutava desde que esteve envolvido com a cena musical de Manchester, quando também testemunhou o surgimento do gênero de música eletrônica acid house. Perguntado sobre como, estando tão imerso no meio musical, ele acabou se tornando escritor ao invés de músico, saiu-se com uma resposta simples: “Tentei ser músico. Diversas vezes. Mas eu não era bom”.



Bruno Cobalchini Mattos nasceu em Porto Alegre, em 1990, e atualmente reside em Foz do Iguaçu. É jornalista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estudou Letras e Tradução na Universidade Autônoma de Madri. Foi editor da revista virtual de crítica literária Cadernos de Não Ficção e já colaborou com os sites do Instituto Moreira Salles e das editoras Rocco e Cosac Naify, além de periódicos como o jornal Zero Hora e as revistas Galileu e Superinteressante.