Capa | Imaginação utópica

Algum lugar em parte alguma

Ideias utópicas deram origem a grandes clássicos e influenciaram autores de todas as épocas. O escritor Nelson de Oliveira escreve sobre movimentos libertários na literatura e o individualismo que domina nosso tempo  

Nelson de Oliveira
                                                                                                                                                                                                                                                                                           Foto: Reprodução/ M. C. Escher
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Numa loja de roupas, uma mulher negra trans é atendida por um homem branco hétero. Ambos têm diploma universitário e um ótimo nível cultural. Ela gosta de olhar nos olhos e de ser olhada nos olhos. Ele também. Durante o atendimento não há qualquer traço de racismo nem assédio sexual. A mulher (negra, ou índia, ou branca) escolhe calmamente os itens de que precisa, o homem (branco, ou amarelo, ou negro) coloca tudo dentro de uma sacola, a mulher vai embora sem pagar por nada. Os produtos de primeira necessidade são fornecidos pelo governo, sem custo.

A mulher é budista, ou católica, ou ateia. O homem é do candomblé, ou do islamismo, ou ateu. Intimidação religiosa ninguém sabe o que é.

A mulher tem uma filha e não falta nada de essencial para a menina: alimentação, escola, transporte, atendimento médico. Para o filho do homem também não falta nada. A mulher trabalha perto de casa, num emprego que ela mesma escolheu, condizente com sua vontade e capacidade. O homem também. A jornada é de vinte horas por semana. Privilégios sociais e profissionais são reprimidos. As oportunidades são distribuídas de maneira justa, sem distinção de gênero ou raça.

Na cidade em que vivem e em praticamente todas as cidades do país o índice de criminalidade é baixíssimo. Existem poucos presídios, apenas para os crimes mais graves, e o preso é sempre tratado com dignidade. A propriedade particular e o direito de herança foram abolidos há décadas. Os políticos profissionais e os partidos políticos também foram abolidos há muito tempo. Os cidadãos implantaram um sistema de autogoverno baseado na liberdade responsável, na cooperação e na autogestão política e econômica. O consumismo é desencorajado. A instituição financeira paga mais impostos do que qualquer outra organização formal.

Mais da metade da população vive no campo. Todos os seres vivos — vegetais e animais — são tratados com dignidade. O aquecimento global está sob controle. Os desastres ambientais provocados pelo progresso desenfreado foram reduzidos a praticamente zero.

Essa é a sociedade que a boa humanidade sempre esperou e sempre mereceu. A utopia sonhada: mais cooperação, menos competição. 

Origens do não-lugar
A primeira utopia batizada com esse nome é, obviamente, a célebre sociedade alternativa pensada por Thomas More. Escrita em latim e lançada em 1516, a obra intitulada Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia (título original em latim, que significa Um pequeno livro verdadeiramente dourado, não menos benéfico que divertido, do melhor estado de uma república e da nova ilha de Utopia) apresenta uma sociedade pacífica e justa, muito diferente da Inglaterra do século XVI.

Na ilha de Utopia, localizada em algum ponto qualquer do Novo Mundo, a riqueza é desprezada, não existe propriedade particular, não há roubos nem desemprego nem fome, homens e mulheres exercem as mesmas funções, há liberdade religiosa, são permitidos o divórcio e a eutanásia, os hospitais são gratuitos e assim por diante. Sem filas, sem falhas. O bem-estar social é o objetivo principal dos governantes.

Thomas More batizou sua ilha juntando dois termos gregos: o prefixo ou (não) e o substantivo topos (lugar), criando um não-lugar, um lugar inexistente no aqui-agora, mas muito presente na imaginação. Mal sabia ele que estava impulsionando também todo um novo gênero literário.

O autor se inspirou em outro texto não menos célebre: A república, de Platão, escrito no quarto século antes da era cristã. Protagonizado pelo principal personagem platônico, o sapientíssimo Sócrates, esse diálogo dialético busca combater as injustiças políticas e sociais de sua época descrevendo o que seria uma cidade-estado perfeita, batizada de Kallipolis (cidade bela).

Administrada por reis-filósofos, na aristocrática Kallipolis triunfa o equilíbrio da razão sobre os excessos da emoção, não existe a malfadada ganância nem a propriedade particular, os cidadãos são esclarecidos, se preocupam mais com os laços sociais do que com os laços familiares, as crianças são criadas pela comunidade, prevalece a igualdade de gênero e a educação é um direito de todos. Bom lembrar que o fascinante mito da caverna, sobre ignorância e conhecimento, é narrado por Sócrates nesse livro.
                                                                                                                                                                                                                                                                                      Fotos: Reprodução
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Thomas More (1478-1535) é autor de Utopia, obra publicada em cerca de 1516 e que criou um reino-ilha imaginário cuja sociedade funcionava de modo justo e perfeito.

Detalhe importante: tanto a sociedade idealizada por Platão quanto a idealizada por Thomas More apresentam certas marcas próprias do contexto em que foram pensadas: racismo, sexismo, elitismo, censura… A cidade-estado de Kallipolis, do filósofo grego, expulsou os artistas e os poetas. E a ilha de Utopia, do pensador inglês, não aboliu a escravidão. Em ambas a liberdade de pensamento não é plena e irrestrita, questionar as normas estabelecidas pela elite é proibido.

Esperança mundana
Existem utopias reais e imaginárias. Mas é certo que as utopias imaginárias são infinitamente mais perfeitas do que as reais.

Na história da civilização, foram inúmeras as vezes em que pequenos grupos se afastaram para inaugurar uma comunidade utópica, quase sempre de caráter religioso, milenarista. Na Idade Média, isolados em mosteiros, cercados de livros, muitos monges viveram apartados da Europa miserável, protegidos de sua ignorância profana e seus vícios mundanos.

Em 1825, no Estado de Indiana, nos Estados Unidos, o socialista utópico Robert Owen criou uma comunidade cooperativista-comunista, chamada New Harmony.

Em 1848, seguidores de Étienne Cabet, autor do livro Viagem à Icária, uma versão atualizada da Utopia de Thomas More, fundaram uma comunidade utópica em Nauvoo, no Estado de Illinois.

Antes disso, o filósofo francês Charles Fourier, um dos pais do cooperativismo, idealizara teoricamente o falanstério, também chamado de comunidade intencional, em que cada indivíduo trabalharia conforme sua vontade e vocação. Inspirados por Fourier, vários falanstérios foram inaugurados na Europa e nas Américas.

No Brasil surgiram meia dúzia de iniciativas similares, sendo a mais conhecida a de Antônio Conselheiro e seus seguidores, em 1893, no povoado de Belo Monte, na Bahia. Apesar da pobreza, ninguém passava fome nessa comunidade autossustentável, baseada na igualdade e na solidariedade.

Essas iniciativas duraram pouco tempo. A pressão externa, social, de natureza política e econômica, mais a pressão interna, individual — a imperfeita natureza humana, egoísta e mofina —, minaram seus alicerces.

Utopias reais não são assunto apenas do passado distante. Pouco tempo atrás, ficou famosa a controvertida utopia norte-americana do guru indiano Bhagwan Shree Rajneesh, maluco-beleza que mais tarde passou a assinar Osho.

Em 1981, para escapar de problemas na Índia, Bhagwan comprou um antigo rancho de vinte e cinco mil hectares no deserto do Oregon, onde ergueu a cidade de Rajneeshpuram. Em sua comunidade alternativa, o milionário líder espiritual (chamado pela imprensa de guru do sexo) promoveu um rompimento com o caótico mundo exterior. No auge do Rajneeshpuram, 15 mil pessoas, entre residentes e visitantes, procuraram expandir a consciência e estabelecer o paraíso na mente humana, por meio das mais diferentes práticas meditativas e terapêuticas.

Bhagwan era um guru fora dos padrões tradicionais. Ele não condenava o conforto e a riqueza. Muito pelo contrário. Apreciava joias e relógios cravejados de diamantes. Era famosa sua coleção de 93 Rolls-Royces. Vários de seus seguidores mais próximos eram radiantes milionários, filhotes legítimos do capitalismo tardio.

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Com A república, Platão buscou uma fórmula que garantiria uma harmoniosa administração à uma cidade, mantendo-a livre da anarquia, do caos e dos interesses e disputas particulares. 

A comunidade não suportou a pressão externa e chegou ao fim em 1985. Seus líderes foram presos, acusados de diversos crimes, entre eles envenenamento, incêndio culposo, espionagem, tentativa de homicídio, fraude eleitoral e de imigração. Bhagwan fez um acordo com o procurador-geral ianque, pagou uma fiança de 400 mil dólares e foi expulso dos Estados Unidos.

Fracasso atávico
Por que as utopias da vida real não deram certo?

Freud e Darwin explicaram muito bem o motivo desses fracassos todos. Thomas More e Platão também já conheciam a razão. Na verdade, até mesmo o sapiens pré-histórico sabia por que sua fantasia de uma comunidade menos violenta e mais justa não passava de simples fantasia.

Somos criaturas imperfeitas, dominadas por impulsos irracionais. A seleção natural sempre promoveu a competição, a luta pela sobrevivência. A vida é um vale-tudo contínuo. No plano subjetivo, um dos méritos da psicanálise foi revelar que o pensamento racional, tão festejado principalmente na ciência, é apenas uma mosca tentando pilotar um tigre selvagem.

A prática utópica não se realiza porque é constantemente sabotada por nossas fraquezas internas: medo, vaidade, ganância, luxúria, inveja, preguiça… A lista é enorme.

A sucessão de fracassos, no entanto, não consegue frear a imaginação utópica, cujo principal combustível sempre foi a esperança. Mesmo vitoriosa, a realidade viciada e viciosa é inaceitável. Aprisionados na masmorra da opressão, os vencidos não desistem de sonhar mundos livres. Bendita teimosia.

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A utopia anarquista teorizada por Mikhail Bakunin influenciou uma gama enorme de artistas, de escritores a músicos.

Platão e Thomas More inspiraram outros visionários. A partir do Renascimento, a lista de não-lugares foi ficando mais rica e interessante, com A cidade do sol (1602), de Tommaso Campanella, Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon, Panorthosia (1657), de Iohannes Comenius, Continuação da Nova Atlântida (1675), de Joseph Glanvill e muitas outras idealizações sociopolíticas.

A verdade é que o pensamento utópico extrapola o campo da política e da administração pública. Ele prospera na reflexão filosófica, certamente, mas também nos mitos sagrados, na arte e na literatura. Utópicos sempre foram o Novo testamento e mais tarde A divina comédia, de Dante Alighieri. Veículos da esperança utópica sempre foram o Bardo thodol, o Alcorão, A doutrina secreta, os manifestos de Filippo Marinetti, as pinturas de Pablo Picasso e Georges Braque, o Pierrot lunaire de Arnold Schoenberg, o nonsense do dadaísmo, os delírios do surrealismo e a revolta revolucionária de todos os ismos de todos os tempos.

Contra a tradição
Entram em cena novíssimas promessas de bem-estar.

A segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX testemunharam uma proliferação sem precedentes de projetos e manifestos utópicos. O império da técnica e da máquina, inaugurado com a revolução industrial um século antes, fortaleceu o capitalismo onívoro, acirrando a luta de classes, estimulando o engajamento e o combate.

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Capa do livro Utopia

A industrialização projetava sombras opressoras e os idealistas respondiam com potentes focos de luz. A utopia anarquista teorizada por Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin e outros militantes foi um desses resistentes focos iluministas. A utopia comunista profetizada por Karl Marx e mais tarde por Vladimir Lenin foi outro. Ambiciosos, incendiários… Anarquismo e comunismo são, talvez, os mais poderosos projetos de civilização desse período conturbado, capazes de fecundar outros movimentos, outros não-lugares.

Todas as vanguardas artísticas e literárias foram ações coletivas impregnadas de imaginação utópica. As obras e os manifestos dadaístas e surrealistas — meus grupos prediletos — denunciavam a cultura oficial, a arte acadêmica, a ética burguesa e a exploração do homem pelo homem no moedor de carne do capital. Propunham a quebra de todos os tabus cultivados pelo senso prático, em favor da liberdade plena. Em favor da volúpia dos sonhos e da loucura, contra a ditadura da razão.

Um vasto continente poético e político sem fronteiras nem alfândegas, esse é o desejo de todos os libertários. A fome de liberdade adota muitas formas e cores na luta contra a repressão sexual, a favor da igualdade de gênero e raça, em benefício da erradicação da pobreza material e espiritual. Foi essa fome coletiva que impulsionou o espírito anarquista das muitas contraculturas, expresso na rebeldia da Geração Beat, no arranque da revolta estudantil (Maio de 68), do movimento hippie e da cultura punk.

Quando compartilhada, a esperança utópica promove a contestação, o choque de projetos existenciais. Nessa batalha orgânica, o antagonista é sempre a tradição. Morte aos velhos valores! Acolhendo e fortalecendo novas crenças, nossos modernistas de 22 propuseram um novo modelo de civilização. Nossos concretistas e tropicalistas também. Modelos que nem sempre concordavam uns com os outros. 

Hoje não há mais grandes movimentos coletivos propondo novos projetos de futuro. Nosso tempo não acredita mais em utopias. Porque todas as utopias envelheceram, dizemos que não vale a pena dedicar tempo e esforço cultivando essas ilusões estéreis. 

Grande engano. 

Certas ilusões de ordem superior — filosóficas, políticas, científicas, estéticas — são fundamentais para nossa saúde mental e social.

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George Orwell é autor de uma das mais conhecidas distopias do século XX, o romance 1984, que faz contraponto às obras utópicas ao propalar um caminho de poucas opções para a sociedade. 

O sonho acabou?
A utopia é sempre uma miragem, uma ilusão de óptica. Algo possível e impossível ao mesmo tempo. Uma ideia verdadeira e falsa. Um conceito ambíguo. Semelhante a certas gravuras de M.C. Escher, que brincam com nossa percepção visual e cognitiva. Mas isso não significa que podemos ou devemos viver sem uma utopia.

Uma sociedade sem esperança é uma sociedade doente. Nosso tempo orgulha-se de viver sem uma ilusão utópica. Somos pragmáticos, somos céticos, não alimentamos fantasias. Não somos mais crianças ingênuas, somos adultos racionais. “The dream is over.” É assim que enganamos a nós mesmos.

Cristianismo, iluminismo, positivismo, comunismo, surrealismo… As velhas utopias enfraqueceram. Não servem mais. Em outra época, já teriam sido substituídas por uma novíssima utopia, um ideal social mais adequado ao nosso contexto. Que também vigoraria por um tempo, antes de murchar pacificamente e ser substituída. Esse é o processo saudável. Mas nossa sociedade objetiva e realista escolheu interromper esse processo.

O individualismo é a nova tendência. Individualismo na política, nas artes… Um individualismo cínico e depressivo.

Adoecemos por falta de um novo projeto coletivo de esperança. Na literatura, no cinema e na TV, o sucesso estrondoso das distopias é um forte sintoma da enfermidade que nos aflige. A palavra vem do grego dis (mau) e topos (lugar). As previsões angustiantes de Ievguêni Zamiátin (Nós), Aldous Huxley (Admirável mundo novo), Geoge Orwell (1984), Ignácio de Loyola Brandão (Não verás país nenhum), André Carneiro (Amorquia), Margaret Atwood (O conto da aia) e outros visionários não são mais apenas um alerta sobre o futuro que devemos evitar, mas um retrato realista do futuro inevitável que logo habitaremos. Um futuro medonho, maravilhoso triunfo da solidão.

Os parágrafos iniciais deste artigo descrevem uma sociedade mais justa e equilibrada. É a minha utopia. Impossível hoje, é verdade. Impossível em um século ou dois. Mas bastante possível talvez em dois mil anos. Ou em dez mil anos. Essa certeza me ajuda a suportar minhas fraquezas internas e as de meus contemporâneos.

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O autor de Um estranho no ninho, Ken Kesey, foi uma figura contracultural que atuou com ponto de ligação entre a Geração Beat e os hippies. Ele e seus seguidores acreditavam no poder transcendental de drogas como o LSD.

E você? Qual é a tua sociedade ideal? Que injustiças atávicas e ideológicas você tentaria abolir? Talvez você esteja pensando numa projeção tecnoxamânica…

Não se esqueça: uma utopia é sempre uma ilusão, mas uma ilusão verdadeira e saudável, necessária para nossa sobrevivência. A ilusão utópica facilita o fluxo social, impedindo a expansão e a permanência de ideias e regimes totalitários. A ilusão utópica é uma necessidade humana, uma poderosa ferramenta evolutiva. 


Nelson de Oliveira nasceu em Guaíra (SP) em 1966 e, desde 1985, vive em São Paulo (SP). É autor dos livros de contos Os saltitantes seres da Lua (1997), Naquela época tínhamos um gato (1998) e Algum lugar em parte alguma (2005), além dos romances Subsolo infinito (2000), A maldição do macho (2002) e O oitavo dia da semana (2005), entre outros títulos. Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), Oliveira também escreve ensaios e assina textos de ficção com pseudônimos, como Luiz Bras.