Capa | George Orwell

Alegoria dos regimes totalitários, o romance 1984 completa 70 anos em 2019. O escritor Ignácio de Loyola Brandão revê o clássico de George Orwell, que permanece como uma obra fundamental para entender o passado e o presente


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Ecoam em minha cabeça afirmações dos governantes, dos atuais, do presidente tosco de um país cujo nome agora me escapa. “Somos a nova política, acabou a velha política”. Será que foi isso que George Orwell imaginou ao criar a “Velhafala” e a “Novilíngua”? E quando vejo a vida idealizada naquele que ainda é um dos romances mais assustadores que já li? 1984, romance de George Orwell, tornou-se clássico desde sua publicação, um ano antes de seu autor morrer, em 1950. O lugar-comum diz que clássico é o livro que permanece atual, pode ser lido em qualquer época, tempo, data. Estremeci quando li pela primeira vez, aos vinte e poucos anos. Em seguida, enfrentei Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, lido nos silêncios das tardes da Biblioteca Pública Mário de Andrade, de Araraquara. Ah, se todos soubessem a riqueza de uma biblioteca, não sairiam de lá. Fiquei siderado com o livro de Huxley, que mostra um Estado Mundial, assim estabelecido: Comunidade, Identidade, Estabilidade. Aquilo, que aparentemente é um paraíso, é na verdade um inferno onde o Homem foi desumanizado. Quantos sabem que este romance foi idealizado a partir do quinto ato da peça A tempestade, de Shakespeare? 

Anos mais tarde me encantaria também com Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Dizíamos que eram utopias, mas então veio uma nova palavra, distopia. Só muito depois fui conduzido à raiz de tudo, o livro de Thomas Morus, ou Thomas More, Utopia, palavra que em grego significa “Não Lugar”, ou “Lugar Nenhum”. Publicado em 1516, em latim, e na altura de 1520, em inglês. Nos últimos tempos, o “Não Lugar” passou a ser estudado na antropologia da supermodernidade, é um lugar onde todos estão, ou passam, mas não pertencem a eles, como hospitais, hotéis, estações, rodoviárias, shoppings e aeroportos.

Até hoje não consegui ler outra distopia famosa, Nós, do russo Ievgueni Zamiátin, publicado em 1924. Fiz esta breve introdução, uma vez que meu romance Não verás país nenhum, de 1982, acabou sendo considerado uma distopia no Brasil. E a ele seguiu Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela, meu livro mais recente, publicado em setembro do ano passado. Sem ter planejado, acabei fechando uma trilogia, se inserirmos meu Zero, de 1975. Mas nada é por acaso. O que começou com uma ditadura parece caminhar nas fímbrias de um novo e estranho período, onde o governo atual começa a negar a história do Brasil ao desmentir o Golpe de 1964, transformando-o em acomodação de camadas da história, ao rastejar diante do Trumpismo, ao saudar a bandeira americana, ao ter orgasmos por ter sido hospedado na Blair House (que é destinada a isso, hospedar estadistas estrangeiros, mesmo que não o sejam) e afirmar que o aquecimento global foi invenção de Karl Marx (1818-1883)...

1984, o livro. Já se foram 35 anos daquela data fatídica. Mas não é que está tudo acontecendo agora? Vejam só? Não estamos lendo os jornais, ouvindo as notícias de cada momento? “Viva Stroessner e Pinochet”; “Foi um banho de sangue no Chile, mas a economia foi recuperada, aqui precisamos de um banho de sangue.”

Refazer a história hoje em 2019. Orwell — pseudônimo de Eric Arthur Blair — já documentava em seu romance:

“O Departamento de Documentação não passava de um ramo do Ministério da Verdade, cuja função primeira não era reconstruir o passado e sim abastecer os cidadãos com jornais, filmes, livros escolares, programas de televisão, peças dramáticas, romances — com todo tipo imaginável de informação, ensino, ou entretenimento, de estátuas a slogans, de poemas líricos a tratados de biologia, de cartilhas, de ortografia a dicionários de Novafala... Havia uma série de departamentos dedicados especificamente à literatura, à música, ao teatro em benefício do proletariado. Ali eram produzidos jornais populares contendo apenas e tão somente esportes, crimes e astrologia, romances sem qualidade, curtos e sensacionalistas, filmes com cenas e mais cenas de sexo e canções sentimentais compostas de forma totalmente mecânica por uma modalidade especial de caleidoscópio conhecida como versificador”.

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O escritor George Orwell escreveu 1984 durante um período que passou no arquipélogo escocês das ilhas Hébridas

Acaso não conhecemos aquele subator de subfilmes pornôs que hoje é o consultor nacional para projetos culturais?

Não parece uma fotografia, um documentário sobre este país cujo nome me escapa, em que a ministra da Mulher vê Deus nos galhos de uma goiabeira, em que a terra não é mais redonda, e sim plana, e uma excursão científica (????????) vai dar uma volta ao mundo para provar que somos planície? Em que uma deputada exige que alunos devem levar os celulares às aulas e gravar quando os professores emitirem opiniões que ofendam a religião, o Deus, a moral (qual moral?), ou tentarem pregar ideologias.

Atravessemos este livro que nos assustou por décadas pelo que predizia e comparemos aqui e ali com a realidade deste país cujo nome está na ponta da língua e agora me escapa. Em 1984 há a Liga Juvenil Antissexo. Há a concessão a delinquentes da medalha da Ordem do Mérito Conspícuo, assim como hoje, aqui, sabemos que muitos milicianos cariocas foram agraciados com diplomas e elogios, mesmo estando numa penitenciária cumprindo penas. Há em Orwell o grupo que se ocupa da destruição das Palavras Inúteis como os antônimos. Afinal, diz um dos personagens, para que uma palavra que é exatamente o contrário das outras? Como usá-la? Afinal a Novafala estrutura o âmbito do pensamento.

Circulemos por um novo país, cujo nome me escapa agora. Sim, para quem não sabe, estou copiando a frase inicial de Dom Quixote: “Num lugarejo de La Mancha, cujo nome ora me escapa, não há muito viveu um fidalgo desses de lança em armeiro, adaga antiga, rocim magro e cão bom caçador”. Neste país (o que há com minha memória?), um governante explosivo, de fala reduzidíssima, que decora cartões com frases curtas, uma vez que não articula nenhuma frase coerente, se propõe estadista e declara: “A reforma das leis econômicas que podem nos salvar não tem mais nada a ver comigo, está com o Parlamento. A bola está com ele, bola pra frente...”. Vamos ver o que o professor decide, como diria um exausto jogador de futebol a uma rádio no final do primeiro tempo de um jogo truncado. Lava as mãos como Pilatos, dá as costas e vai para o “uatsap” comunicar.

Fiquei perplexo ao reler em Orwell a existência dos “Dois Minutos de Ódio produzidos pelos meios de comunicação, que se estendem para as Semanas de Ódio”. Esse é o trabalho hoje das redes sociais, que muitos bem-pensantes chamam de insociais, porque espalham ódio como uma epidemia que contamina, destrói famílias, amizades, ligações, amores.

Nesta sociedade de Orwell, comandada pelo Partido Único, a privacidade desapareceu, as câmeras estão por toda parte, disseminadas, a anonimidade tornou-se impossível, sabe-se onde estamos o tempo inteiro, sabem o que estamos fazendo, com quem estamos, o que pensamos (e para isto no meu romance Desta terra... criei os thinkingchips). Não sabemos onde, mas tudo é registrado e guardado, não sabemos quando tal material será usado e assim devemos ser cautelosos. 

Não há teletelas, mas há as telinhas dos celulares, as telas de tevê, as câmeras que nos espionam e levam nossas imagens ao mundo, às agências governamentais, ao Facebook, ao Instagram e a outras redes sociais. Como é que não há mais Polícia de Ideias?  

E o que são as redes, principalmente quando comandadas por energúmenos que as conduzem para o mal, que é a propagação de seus ensinamentos, ideias, ideologias, religião, crenças, filosofias?

Orwell mostra que naquele país dele, Oceânia, existe o Ministério da Pujança, a Polícia das Ideias, o Departamento de Ficção (este departamento é igual a um conhecido Ministério da Educação deste país cujo nome me escapa, muitíssimo perto de nós, plena fantasia, perigosa fantasia, mergulhado na confusão, mixórdia de ideias, há meses sem um único projeto dedicado ao essencial de uma Nação, a formação de cidadãos). Há o Ministério do Amor. Estremeci ao reler o ritual (para nós censura) a que são submetidas publicações em um recinto secreto, invisível. Ele é assim descrito: 

“Depois de efetuadas todas as correções e uma vez procedida a inclusão de todas as emendas, a edição era reimpressa, o original destruído e a cópia corrigida era arquivada no lugar da outra. Esse processo de alteração contínua valia não apenas para os jornais como também para os livros, periódicos, panfletos, folhetos, filmes, trilhas sonoras, desenhos animados, fotos — enfim para todo tipo de literatura ou documentação que pudesse ter algum significado político ou ideológico”. 

    Reprodução
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Cena da adaptação cinematográfica de 1984, que o cineasta inglês Michael Radford filmou em 1956

Isso existiu aqui na ditadura. Mas como? Não houve ditadura, foi apenas uma correção de rumos... Há também neste romance uma seção em que os nomes das pessoas são “vaporizados” ou expurgados, assim como Stalin fazia com as figuras dos inimigos nas fotos oficiais, eliminando-os para sempre.

Ao elogiar Pinochet — o que causou indignação ao atual presidente do Chile —, Stroessner (tido pelo nosso governo como um grande estadista) e o torturador Ustra, o chefe desta nação cujo nome está na ponta da língua segue as determinações deste outro país que Orwell retrata em 1984, uma das mais fortes distopias da literatura universal. Que parece tornar-se realidade hoje, aqui e agora, e daqui a pouco.

O Partido Único domina tudo, vê tudo, sabe tudo, vigia tudo, controla tudo, busca aniquilar as consciências. E se todos os outros aceitarem a mentira imposta pelo Partido — se todos os registros contarem a mesma, a única, história —, a mentira torna-se história. “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”, rezava... O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a memória. Controle da realidade era a designação adotada... “Mostrar-se cem por cento confiável ao contar mentiras construídas laboriosamente, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma a outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas. Considerando que o Partido mantém absoluto controle sobre todos os registros e sobre todas as mentes de seus membros, decorre que o passado é tudo aquilo que o Partido decide que ele seja.”

O que temos testemunhado? Idas e vindas, declarações e desmentidos, ideias desencontradas, incongruentes, que causam mal-estar aos mais lúcidos Assustei-me quando percebi que no romance Desta terra nada vai sobrar... foi eleito um presidente sem coração, outro sem memória, outro sem ideias e pensamentos, outro sem cérebro.

Trago um breve trecho do final de 1984, um diálogo entre o personagem principal e um defensor do Partido Único e das normas sobre as quais está alicerçado o novo regime:

“Winston se recupera o suficiente para conseguir falar:

— Vocês não podem, disse com voz fraca.

— O que você quer dizer com isso, Winston?

— Vocês não podem criar um mundo assim como você acaba de descrever. É um sonho. É impossível.

— Por quê?

— É impossível criar uma civilização baseada no medo, no ódio e na crueldade. Uma civilização assim não pode perdurar.

— Por que não?

— Ela não teria vitalidade. Ela se desintegraria. Ela cometeria suicídio.

— Bobagem. Você está com a sensação de que o ódio provoca mais exaustão do que o amor. E por que seria assim? E se fosse, que diferença faria?...”

Concluo: que diferença está fazendo? Cada um de nós, que tem consciência, moral e ética sabe a diferença. 


IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO nasceu em Araraquara (SP), em 1936. É jornalista, contista e romancista. Entre os mais de 30 livros que publicou, destacam-se os romances Zero e Não verás país nenhum, duas das obras mais comentadas da literatura brasileira. O romance Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela (2018) é seu livro mais recente. Em 2019, Loyola Brandão foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.

LINHA DO TEMPO

1903
Eric Arthur Blair nasce em Motihari, Bengala, uma colônia Britânica na Índia, no dia 25 de junho.

1904
Muda-se com a mãe e a irmã mais velha de seis anos, Marjorie, para a Inglaterra. Recebe visitas esporádicas do pai.

1917
Em maio, é admitido em Eton, escola preparatória bastante célebre na Inglaterra.

1921
Sai de Eton após uma carreira escolar sem brilho.

1922
Passa no exame admissivo para a Polícia Imperial Indiana e é locado em Burma, país asiático ao leste da Índia. A experiência fornece material para o romance Dias na Birmânia.

1927
Contrai dengue, sai da Polícia Imperial Indiana após cinco anos de serviço e retorna à Inglaterra. Desiste da carreira militar para se dedicar à escrita.

1933
Estreia na literatura com o livro de memórias Na pior em Paris e Londres, com o pseudônimo George Orwell. 

1934
Publicação do romance Dias na Birmânia.

1935
Publicação do segundo romance, A filha do reverendo.

1936
- Publicação do terceiro romance, A flor da Inglaterra
- Casa-se com Eileen O’Shaughnessy, sua primeira esposa.

1937
Alista-se como voluntário na Guerra Civil Espanhola juntamente com a esposa. Leva um tiro na garganta durante o confronto.

1939
A Inglaterra entra na 2ª Guerra Mundial e Orwell submete seu nome para participar da batalha como voluntário, mas o pedido é negado devido ao seu estado de saúde debilitado. 
- Publicação do quarto romance, Um pouco de ar, por favor! 

1945
- Morre Eileen O’Shaughnessy, vítima de uma cirurgia mal realizada. 
- Publicação do quinto romance, A revolução dos bichos.

1947
Em Londres, devido ao frio intenso, queima seus livros e brinquedos dos filhos para obter calor. No mesmo ano é diagnosticado com tuberculose.

1949
- Publicação do sexto e último romance, 1984, que completa 70 anos em 2019. 
- Casa-se com Sonia Brownell.

1950
Morre aos 46 anos de idade, vítima de tuberculose, no dia 21 de janeiro.