Capa - Entrevista: Alcir Pécora

“Os bons autores hão de surgir quando surgirem”

Para o crítico literário Alcir Pécora, os novos autores da literatura brasileira ainda não superaram os modelos literários das gerações anteriores e Hilda Hilst é a maior autora nacional surgida nas últimas décadas, mas que ainda está por ser descoberta

Luiz Rebinski Junior

alcir

 

Ao contrário da maioria de seus colegas de acadêmia, Alcir Pécora parece ter certa predileção pelo embate. Um dos menos “encastelados” acadêmicos da atualidade, o professor da Universidade de Campinas (Unicamp) tem sido presença constante nas páginas de jornais e revistas, sempre com resenhas instigantes, marcadas pela crítica rigorosa e criteriosa das obras que analisa, em sua maioria de escritores brasileiros contemporâneos. Sobre esses escritores, Pécora diz não perceber “identidade literária” para que possam compor uma “geração”. 


Organizador das obras completas de Hilda Hilst, Pécora diz que a autora de A obscena senhora D. é “a maior escritora do Brasil [surgida] nos últimos anos”. O crítico diz não acreditar em antologias estabelecidas por critérios cronológicos, mas identifica na atual produção uma inclinação para falar “muito sobre a própria literatura, sobre escritores, seus estigmas, suas viagens, etc.”


Pécora estava na comissão do Prêmio Camões, que em 2012 laureou Dalton Trevisan. Para o crítico, Trevisan é o maior escritor vivo do Brasil, um autor cuja obra ainda não conhecemos suficientemente.

Vários dos principais escritores brasileiros hoje tem 70 anos ou mais: Carlos Heitor Cony, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola, Manoel de Barros, Luis Fernando Verissimo, Ferreira Gullar. Na sua opinião, quem são os autores que podem substituir os escritores acima citados?
A questão parece trazer um sofisma dentro de si. Veja: não existe nenhuma necessidade, ou mesmo hipótese razoável de “substituição” de autores. No âmbito da cultura, não há cadeiras ou lugares numerados como num time, num congresso ou numa academia literária, nos quais quando alguém sai ou morre, vaga um posto e alguma outra pessoa passa a ocupá-lo ou torna-se membro. Em cultura, estamos, por um lado, no domínio na contingência, como na vida de qualquer um: alguém morre, mas nem por isso alguém necessariamente o substitui; e, por outro lado, paradoxalmente, estamos também no terreno da longa duração ou da eternidade: alguém morre, mas, diferentemente de todo mundo, a sua obra, quando tem valor, pode não morrer. Por vezes, continua tão viva e cheia de viço como quando surgiu, talvez até mais, recebendo a cada novo tempo, novas interpretações, ganhando riqueza semântica. Nesse caso, falar em substituição é simplesmente querer excluir o que, se tiver méritos, pode existir para sempre, sem qualquer necessidade de deixar o posto.


“Não acredito em antologias estabelecidas por critérios cronológicos. Literatura jovem é um critério de apreciação tão mesquinho e impróprio quanto literatura senil.”


Acha que a próxima “geração” pode fazer frente aos nomes atuais, que escreveram alguns dos principais livros da literatura brasileira no século XX? (Penso em Viva o povo brasileiro, O vampiro de Curitiba, Poema sujo, etc.).
“Geração” em literatura não é uma questão cronológica ou de idade apenas: tem de haver identidade literária entre os que participam dela (e não apenas certo intervalo de tempo de nascimento em comum), e também tem de haver ruptura ou distinção literária em relação aos que não fazem parte dela. Apenas assim, parece justo identificar uma geração literária. Se os novos autores se limitam a repor, mesmo que em novas circunstâncias, os mesmos modelos literários das gerações anteriores, então eles não constituem uma nova “geração”. Nesses termos, para falar francamente, não vejo, no Brasil, nenhuma nova geração literária. Ao menos, não no sentido de se contrapor consistentemente à geração dos anos 1960, por exemplo, cujos modelos são ainda os vigentes entre os novos autores, quando não a gerações ainda mais velhas.

É sempre mais fácil fazer uma avaliação com o distanciamento do tempo (alguns dos livros dos escritores que citei têm mais de 30 anos), mas consegue identificar diferenças entre os “novos” e os “velhos” autores? Ou melhor, com a geração de escritores como Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, dois escritores que despontaram nos últimos dez anos, a literatura nacional mudou? Em que sentido?
Como lhe disse antes, não vejo diferenças ou distinções capazes de determinar uma nova geração, um novo estilo, etc.

Ainda sobre a temática da atual literatura brasileira: Viva o povo brasileiro é um livro sobre a formação do Brasil, Zero é sobre um dos períodos mais conturbados da história recente. Sobre o que a literatura brasileira atual escreve? Saberia dizer?
O leque de assuntos é amplo, mas a abordagem é, em geral, muito ligeira, feita pela rama. E, sim, falam hoje muito sobre a própria literatura, sobre escritores, seus estigmas, suas viagens, etc. Há uma mitologia literária que passa por ser a própria literatura. O grande herói desse tipo de gente é Enrique Vila-Matas. Já alguém disse que ele tinha a profundidade de um pires. Eu concordo.


“Nem o jornal, nem a academia estão discutindo literatura de maneira especialmente interessante. O problema não é do veículo ou da instituição particular, é da própria crítica contemporânea, que vive uma crise devastadora.”


Ano passado a revista inglesa Granta listou os jovens mais promissores da literatura brasileira. A julgar pela escolha da revista e de seus jurados, o futuro da literatura brasileira está garantido?
Não acredito em antologias estabelecidas por critérios cronológicos. Literatura jovem é um critério de apreciação tão mesquinho e impróprio quanto literatura senil. Mas admito que, não por acaso, é muito mais ajustada ao mercado.

O jornal, nos últimos anos, perdeu força como veículo de discussão da literatura brasileira. Esse papel ficou com a academia hoje? Aliás, os autores precisam do que para se tornarem grandes? Só bons livros e leitores?
Nem o jornal, nem a academia estão discutindo literatura de maneira especialmente interessante. O problema não é do veículo ou da instituição particular, é da própria crítica contemporânea, que vive uma crise devastadora. Está tão sem capacidade de se pensar fora dos releases publicitários — portanto, fora do mercado —, quanto sem capacidade de se atribuir um ato de juízo argumentado, que não seja um simples parti pris a favor de interesses e direitos (mais ou menos justos) de coletividades de semelhantes —, portanto, fora de um tipo de publicidade de grupo e de subjetividades expandidas.

A chamada vida literária no Brasil se intensificou nos últimos anos e a participação de escritores em feiras, bate-papos e eventos similares acabou sendo importante para as carreiras dos autores. Ainda que isso fique mais no campo do marketing do que da literatura, acha que há grandes escritores ainda desconhecidos no Brasil, que possam ser reconhecidos e lidos em um futuro breve?
A vida literária se intensificou? Será? Sou apenas um professor, vivo na universidade: ali, certamente não há nenhuma vida cultural intensificada. Para mim, o que se intensificou foi a profissionalização e a institucionalização dos veículos materiais que lidam com ela, o que pode significar, e em geral significa, o oposto de intensidade. O que é do campo de marketing, como você identifica, fica no campo do marketing. Sobre a segunda pergunta, ela é um pouco sofística igualmente: simplesmente não dá para saber se há “grandes escritores desconhecidos”. Saberemos apenas quando se tornarem conhecidos. Mas, claro, virtualmente nada impede que haja. As suas perguntas dão a entender de que você tem muita “esperança” de que haja, você “torce” para que surjam autores mais e melhores que os atuais. É perfeitamente legítimo ter esperança, torcer, com ou sem base racional para a crença, mas não é possível saber ainda se ela corresponde a qualquer coisa mais que confiança no futuro, pensamento otimista, etc. 


Se pudesse apostar em 10 nomes que serão lidos daqui a 20 anos, quem seriam?
Não acho que em literatura as coisas se passem assim de 20 em 20 anos, ou de 50 em 50. Como lhe disse, o tempo da literatura é o da longuíssima duração. Não estamos falando até agora de Homero, de Vergílio, de Dante, Petrarca, Camões ou Donne? De Baudelaire, Mallarmé, de Eliot, de Pessoa, de Pound etc. etc.? Existem autores mais radicais, atuais, urgentes? Para que a preocupação com os 10 autores imagináveis de daqui a 20 anos, se temos todos os melhores autores do mundo à nossa disposição já agora? Para não parecer antipático com a citação desses grandes nomes, posso lhe dar uma outra versão desse argumento, num tempo mais próximo e num espaço mais local. A maior escritora do Brasil nos últimos anos se chama Hilda Hilst. Ela é ainda muito mal conhecida, tanto no Brasil como no mundo. Daqui a 20 anos talvez a conheçamos um pouco mais. Essa é uma boa expectativa, não é? Outro exemplo: Dalton Trevisan é o maior escritor vivo do Brasil, na minha opinião. Nós o conhecemos suficientemente? Já basta de falar dele? Ele não terá produzido livros tão bons para serem relidos com novas abordagens, fora da mitologia provinciana de Curitiba ou da caricatura moral do cafajeste? Acho que isso pode nos ocupar bastante daqui a 20 anos. Em resumo: os bons e grandes, quando existirem, vão surgir de um jeito ou de outro. Não há porque cuidar deles como de bebês, que vão escorregar de nossas mãos ou vão se mandar para outra freguesia, arreliados, se não rezarmos já em seus bercinhos como se fossem já celebridades de amanhã. O que é urgente e necessário fazer, dada a estreiteza da situação literária e cultural brasileira (mas não apenas dela), é cuidar da educação básica do país. Isto feito, basta: os bons autores hão de surgir quando surgirem. 

Foto: Shigueo Murakami