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Livros da Estação

Complexas, leves ou simplesmente divertidas, as leituras de verão são uma tradição em países como França, EUA e Inglaterra. O jornalista e tradutor Irinêo Baptista Netto explica esse conceito e elabora uma lista com alguns títulos recentes que podem melhorar a temporada

 

Janeiro funciona como um entreato. É o intervalo entre um ano que acabou e outro que começa (mas que só vai começar mesmo quando? Em meados de fevereiro? Ou depois ainda?). Nesses dias, tão importante para mim quanto decidir o que fazer da vida — se consigo viajar ou fico em casa, se resolvo pendências ou procuro descansar —, é decidir o que vou ler.

Como leio bastante por obrigação no trabalho, dou valor às chances que tenho de ler por prazer. Gosto de me planejar para elas, como alguém que organiza um roteiro de viagem, escolhendo os pontos que quer visitar, os museus e os passeios.

Troquei uma ideia com amigos e conhecidos para saber se essa disposição era mais ou menos comum entre pessoas que gostam de ler e descobri que muitos não se preocupam como eu. Imagino que continuam com os livros que estavam lendo, ou começam novos livros, sem avaliar tema, autor, ou número de páginas. 

Uma parcela pequena, com a qual me identifico, analisa os cenários possíveis e se deixa levar por desejos incomuns como encarar um romance de mil páginas (Cidade em Chamas, de Garth Risk Hallberg) ou enfim ler aquela coletânea de contos que passou tempo demais na fila (Manual da Faxineira, de Lucia Berlin). Outros buscam o conforto de personagens queridos (o delegado Espinosa, dos romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza) e evitam temas pesados para não estragar o período de descanso e relaxamento.  

 

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Lucia Berlin ganhou notoriedade no Brasil com os contos de Manual da Faxineira (2017)

Lucia Berlin ganhou notoriedade no Brasil com os contos de Manual da Faxineira (2017)

 

 

Do ponto de vista comercial, o mercado editorial do Brasil ignora as férias de verão. Na prática, as editoras também entram numa espécie de recesso e o número de lançamentos diminui bastante ou vai a zero. A revista Quatro Cinco Um, a única do país especializada em livros, não circula nos meses de janeiro e fevereiro. E aqui não se fala em “leituras de verão”, refletindo talvez a indisposição dos brasileiros para ler qualquer coisa quando está no calor, de férias ou de folga.  

Na França, nos Estados Unidos e no Reino Unido, países que leem mais e com um mercado livreiro mais robusto, as editoras se preparam para tirar o máximo proveito do período, que para elas ocorre entre junho e agosto.

Os franceses chamam as publicações planejadas para as férias de livres d’été (livros de verão). Os americanos e os britânicos falam em summer reading (leituras de verão) ou summer books (como os franceses). Porém, a ideia é a mesma: aproveitar o verão, com ou sem férias, para ler alguns livros legais.

Mas o que é um livro legal para o verão? Bom, cada país tem uma resposta diferente para essa pergunta.

 

Os complexos

Se não me engano, é no romance Plataforma, de Michel Houellebecq, que um personagem leva para a praia um livro do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951). O exemplo reforça o clichê: acham que todo francês é intelectual, do tipo que não vê problema nenhum em deitar na areia sob o sol lendo textos filosóficos barra-pesada. 

A realidade não fica muito longe da ficção (e do clichê). De acordo com uma pesquisa do Centro Nacional do Livro com o Instituto Ipsos, 91% dos franceses se declaram leitores. O francês lê em média 22 livros por ano. (A mais recente pesquisa Retratos de Leitura, de 2016, diz que a média do brasileiro é de menos de três obras lidas, integralmente, por ano.)

 

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Luiz Alfredo Garcia Roza

Luiz Alfredo Garcia Roza é criador do delegado Espinosa

 

É estranho que alguém encare como entretenimento um livro sobre sexualidade escrito por Michel Foucault (1926-1984) ou ensaios sobre a morte assinados por Elias Canetti (1905-1994), mas eles estão nas sugestões do jornal Le Monde para o verão.

O jornal francês indica também romances e vários deles são traduções — como A Uruguaia, do argentino Pedro Mairal —, mas passa longe dos livros de gênero, mais populares e de leitura fácil. 

 

Os simples

Os americanos não têm fama de intelectuais, mas leem 12 livros, em média, por ano. O mercado livreiro nos Estados Unidos é um negócio de muitos bilhões de dólares: US$ 25,8 bilhões em 2018, segundo o levantamento anual da StatShot, o equivalente a mais de R$ 100 bilhões. Para se ter uma ideia, no mesmo período, o mercado editorial brasileiro faturou pouco mais de R$ 5 bilhões.

Também por causa de todo esse dinheiro, o meio editorial americano acaba sendo muito especializado, com um grande número de publicações dedicadas a assuntos mais ou menos incomuns.

Quando sugeriu suas leituras de verão, em 2018, o jornal The New York Times trabalhou com gêneros mais divertidos e evitou títulos que poderiam ser considerados cerebrais de alguma forma. (Os livros sugeridos pelo diário nova-iorquino ainda não saíram no Brasil e acho difícil que saiam, por serem de uma especificidade quase absurda. Então os títulos em português citados aqui são traduções livres.) Em meio às dicas estão relatos de viagem sobre a Rússia, a Turquia e Paris; livros de culinária com nomes engraçados como Amor e Limões Todos os Dias e Felicidade é Usar o Forno; e outros sobre jardinagem tão básicos quanto o Passo a Passo do Jardineiro Iniciante.

Do gênero romance, eles indicam só alguns de terror e de ficção científica, mas nenhum autor muito conhecido — nada de Stephen King, por exemplo. A lista termina com títulos sobre música (destaque para a biografia do grupo Crosby, Stills, Nash & Young) e esportes (um livro fala de estádios de beisebol, outro trata de uma partida histórica entre o Baltimore Orioles e o Chicago White Sox, temas exóticos para um brasileiro que não sabe nada de beisebol).

É como se a noção do livro como forma de entretenimento fosse mais difundida nos Estados Unidos do que em outros lugares. 

 

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Michelle Obama

Michelle Obama reuniu suas memórias em Minha História (2018)

 

 

Os moderados

A julgar pelas indicações de verão do jornal The Guardian, os britânicos são um meio-termo simpático entre o gosto francês e o americano. Eles leem 12 livros por ano, segundo uma pesquisa de 2018 feita pelo instituto YouGov. Contudo, o levantamento considera apenas as leituras por prazer (e não existem dados recentes sobre o número de obras lidas por obrigação). 

O fato é que essas estatísticas dão uma ideia mais ou menos vaga da realidade. Se calculam uma média, obviamente existe gente lendo muito mais e gente lendo muito menos. Uma pesquisa mais antiga, de 2013, feita pela World Culture Score (WCS), aponta a Índia como o país que mais lê livros no mundo. A França é o 9º; Estados Unidos, o 23º; e o Reino Unido aparece na 26ª posição, seguido do Brasil, na 27ª.

De volta ao Guardian. O diário com sede em Londres tenta equilibrar ficção e não ficção, alta literatura e best-sellers, organizando os títulos em categorias como “comédia”, “envolventes”, “realidades alternativas” e “vida moderna”. Assim consegue sugerir romances de escritoras premiadas como Ali Smith (conhecida por suas experimentações formais) e Sally Rooney (uma irlandesa que chamou atenção com o recém-lançado Pessoas Normais), o livro de memórias de Michelle Obama (Minha História), um ensaio político sobre o governo de Donald Trump (O Cerco) e um estudo sobre a emergência climática (A Terra Inabitável).  

 

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Michel Foucault

O filósofo francês Michel Foucault, autor do clássico Vigiar e Punir (1975)

 

 

E aqui, como seria?

De acordo com a pesquisa Retratos de Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro, um leitor no Brasil é aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses. E por “livro” eles consideraram tudo: de obras didáticas até a Bíblia. Vale lembrar que a Bíblia foi o livro mais citado pelos entrevistados e que bastava a pessoa ter lido um salmo nos últimos 90 dias para ser considerada leitora. O percentual de 56% de leitores que o Brasil tem, na prática, deve ser bem menor. E tenha em mente que uma pessoa religiosa pode passar a vida lendo a Bíblia sem se interessar por outros livros — isso significa que ela se interessa pela Bíblia e não por literatura. Para o mercado livreiro, esses dados não dizem muito.

De resto, as leituras de verão não são muito difundidas no Brasil (quantas pessoas você vê carregando livros na praia? Ou em viagens de ônibus e de avião?). Porém, o país de Machado de Assis lê só um pouquinho menos do que o de Shakespeare: são 5h18 contra 5h12 por semana, segundo aquela pesquisa da WCS. E está atrás dos conterrâneos de Balzac (6h54 por semana) e dos de Hemingway (5h42). Essas horas consideram apenas o tempo gasto com livros.

Ao elaborar uma lista possível de leituras de verão, o Cândido optou por seguir a lógica inglesa, com um pouco de tudo: óbvios e não tão óbvios, ficção e não ficção, estrangeiros e brasileiros.

É uma seleção com autores e livros publicados no Brasil nos últimos seis meses de 2018. Não é de maneira nenhuma uma lista definitiva, mas sim um ponto de partida para leituras instigantes. São seis títulos que abarcam escritores premiados, temas controversos, figuras históricas, a vida e a morte. 

Uma vida de aventuras

As Desventuras de Arthur Less

As Desventuras de Arthur Less, de Andrew Sean Greer. Tradução de Márcio El-Jaick. Record, 252 páginas. R$ 49,90. Romance.

Este é um daqueles livros que fazem a gente se sentir um pouco menos sozinho, um pouco mais humano. A princípio, você pode não ter muita coisa ou mesmo nada em comum com Arthur Less, o protagonista da história, um escritor gay branco prestes a completar 50 anos que está lidando muito mal com o fato de envelhecer, estar sozinho e, sobretudo, ter sido convidado para o casamento de seu ex-namorado, Freddy, nove anos mais novo. Para evitar a cerimônia a todo custo, ele aceita vários convites que recebeu, alguns bastante estranhos, que devem render uma espécie de volta ao mundo, com paradas que incluem a Itália, a Índia e o Japão. Você pensa que não tem nada em comum com Less, mas aos poucos vai entendendo que os medos, inseguranças e patetices do personagem fazem dele parte de uma espécie em que todos têm seus medos, inseguranças e patetices. Enquanto rememora os amantes que marcaram sua vida, Less pensa: “Eles [os amantes] podem ter dado para o gasto, muitos deles. Tanta gente dá para o gasto. Mas, depois que se vive um grande amor, não é possível conviver com o que ‘dá para o gasto’; é pior que conviver consigo mesmo”. 

De certa forma, Andrew Sean Greer conta uma história sobre amor e a passagem do tempo. Sobre ser capaz de fazer as pazes com a pessoa que você se tornou — algo inevitável para alguém que chegou aos 50 e não quer se tornar amargo —, sobre conseguir rir de uma ou outra desgraça que marcou sua vida. 

Há ainda um jogo de palavras divertido que o autor faz com o sobrenome do personagem (less, em inglês, significa “menos”) e com que a edição brasileira lida bem ao simular um verbete de dicionário na contracapa do livro. Ao fim, você fica feliz de ter tido a companhia de um homem extraordinário em sua banalidade. Tão imperfeito qualquer outro. Numa bela definição dada por um amigo, Less “tem a sorte de um comediante. Azar nas coisas que não importam. Sorte nas coisas que importam”. O livro de Greer venceu o Prêmio Pulitzer de Ficção 2018, o mais importante dos Estados Unidos.

 

Um pouco de romance

Pessoas Normais

Pessoas Normais, de Sally Rooney. Tradução de Débora Landsberg. Companhia das Letras, 264 páginas, R$ 54,90. Romance.

A história começa em janeiro de 2011, termina em fevereiro de 2015 e se concentra na relação entre Connell e Marianne, dois amigos que se conhecem na escola e estão prestes a entrar na universidade. Na verdade, eles começam como amigos, depois viram amantes (quer dizer que dormem juntos algumas vezes — é estranho usar a palavra “amantes” com pessoas tão novas), rompem e passam a alternar essas duas condições. Não se trata exatamente de uma amizade colorida porque a relação é mais confusa do que isso. Em algum momento, você pode até se irritar com as dificuldades que os dois criam para si próprios, mas tenha em mente que, para algumas pessoas (normais ou não), lidar com sentimentos não é fácil. A autora tem uma maneira peculiar de narrar a história, fazendo os personagens falarem sem o uso de aspas nem de travessões. Como neste trecho:

O que você quer que eu faça? Que te deixe em paz?
Ele olhou para ela, aparentemente assustado com essa reviravolta na discussão. Balançando a cabeça, ele disse: Se você fizesse isso…
Ela olhou para ele, mas não falou mais nada.
Se eu fizesse isso, e daí?, ela disse.
Sei lá. Quer dizer, se você não quiser mais que a gente saia juntos? Eu ficaria surpreso, sinceramente, porque tenho a impressão de que você curte.

O texto é fluido e sua simplicidade é só aparente. Há nele uma intensidade das experiências vividas pela primeira vez. Os personagens de Sally Rooney lembram os de John Green (A Culpa é das Estrelas), só que um pouco mais velhos e, por isso, com mais acesso a festas, bebidas e sexo. O texto dela, porém, é mais elaborado do que o dele. Ainda assim, os dois parecem ter uma compreensão fora do comum sobre o que é ser jovem e os tropeços a que todo mundo está sujeito ao amadurecer. Nascida em 1991, Rooney, assim como seus personagens, também entrou na vida adulta nos anos 2010.

Sobre a importância dos amigos, ela escreve: “[Marianne] sentia-se feliz por estar cercada de gente de que gostava, que gostava dela. Sabia que se quisesse falar, todo mundo provavelmente se viraria e escutaria com genuíno interesse, e isso também a alegrava, embora não tivesse absolutamente nada para falar”. Sobre bullying: “Você não aprende nada muito profundo simplesmente sofrendo bullying; mas ao fazer bullying com alguém, você aprende algo de que nunca vai conseguir esquecer”. Em outro momento, Marianne pensa em Connell e diz para si mesma: “As pessoas são muito mais conhecíveis do que imaginam ser”. Talvez essa seja a melhor frase do livro. Pessoas Normais pode funcionar como boa literatura jovem, mas é também boa literatura, ponto. 

 

 

 

Um drama doloroso

Crocodilo

Crocodilo, de Javier A. Contreras. Companhia das Letras, 184 páginas, R$ 64,90. Romance.

Apesar do nome estrangeiro, dado pelos pais chilenos que se exilaram no Brasil nos anos 1970, Javier Arancibia Contreras é brasileiro e um escritor de talento fora do comum. A princípio, Crocodilo parece difícil por causa do tema: um pai tem de lidar com o suicídio do filho. Ruy, o pai, já é septuagenário e seu filho morreu com 28 anos, saltando da janela de seu apartamento no 11º andar de um prédio numa rua pequena e bonita, perdida no meio de uma cidade grande. A morte de Pedro serve como ponto de partida e Crocodilo é triste, sim, mas de um jeito resiliente. 

Em conversa com um amigo, Ruy diz: “Qual é a definição de um pai que perde o filho?”. O amigo não entende a pergunta direito. “A definição. O vocábulo. O léxico…”, emenda Ruy. O amigo dá de ombros. “O órfão perdeu o pai ou a mãe ou ambos. O viúvo perdeu a esposa ou vice-versa. Também tem o ‘ex’. Ex-marido, ex-namorada…”, diz Ruy. Então o amigo arrisca dizer: “Órfão de filhos?”. Ruy ergue a voz: “Não existe! É uma espécie de tabu social e linguístico”. A conversa continua e Ruy vai ainda mais fundo, argumentando que o pai de um filho único que morre deixa de ser pai. “Eu, neste momento, não sou mais pai de ninguém. A morte do Pedro significa também a minha morte como pai…”

Ruy é jornalista e, para tentar entender os motivos do filho, começa uma investigação, falando com pessoas próximas de Pedro. A certa altura do romance, surge uma lista de muitas páginas com nomes de pessoas famosas que se suicidaram e com os métodos que usaram (uma lista talvez feita por Ruy, no processo de lidar com a perda). O assunto é tão controverso que pouco se fala, por exemplo, que Santos Dumont se suicidou (ele se enforcou com uma gravata em um hotel no Guarujá). 

A força de Crocodilo está na segurança com que Contreras nos conduz pela notícia da morte, o mal-estar decorrente dela, o luto e, por fim, a vida que resta para quem fica. Que não é pouca. 


 

Uma história de guerra

Churchill & Orwell - A luta pela liberdaded

Churchill & Orwell — A Luta pela Liberdade, de Thomas E. Ricks. Tradução de Rodrigo Lacerda. Zahar, 352 páginas, R$ 69,90. História.

Talvez seja um exercício despropositado de imaginação, mas é bem provável que não estivéssemos aqui, trocando uma ideia sobre livros, se em 1939 um senhor atarracado que consumia charutos e uísque demais, de nome Winston Churchill, não tivesse se recusado a negociar com o tigre quando estava com a cabeça dentro da boca do animal (a metáfora se refere à ideia de fazer um acordo de paz com Hitler, defendida por alguns adversários políticos de Churchill). O primeiro-ministro britânico entendeu a ameaça nazista muitos antes da maioria e animou o país a resistir a todo custo, entre 1939 e 1941, quando enfim os Estados Unidos foram arrastados para dentro da Segunda Guerra Mundial pelo ataque japonês a Pearl Harbor. Um dos argumentos defendidos por Thomas E. Ricks, e com uma elegância que torna o texto irresistível, é que se não fosse a resistência inglesa (e alguns erros de cálculo de Hitler), os americanos teriam chegado tarde demais e os alemães, vencido a guerra. 

Nessa época, o escritor George Orwell ainda não era ninguém e ralava muito para ganhar seu sustento e escrever os romances que tinha em mente. Dois desses livros acabaram marcando o século 20 de maneira definitiva: 1984A Revolução dos Bichos. Por meio da obra de Orwell, conseguimos entender outras ameaças à liberdade e ver como sua ficção é assustadoramente premonitória (quando imagina, por exemplo, um estado capaz de monitorar a intimidade das pessoas).  

O paralelo entre Churchill e Orwell não é nada óbvio no começo, mas vai funcionando à medida que o autor expõe seu ponto de vista. Em termos políticos, eles eram opostos: o primeiro pode ser descrito como um conservador cheio de privilégios e apegado à glória do império britânico, o segundo deu as costas para esse mundo de privilégios a fim de viver e entender as agruras dos menos favorecidos.

Um dos pontos de contato entre os dois se dá quando Ricks destaca as anotações que Orwell fazia em seu diário comentando de modo favorável algumas decisões tomadas por Churchill. Eram bons tempos em que dois homens que não poderiam ser mais diferentes, com interesses políticos distintos, ainda conseguiam encontrar um território de ideias e valores em comum, que para eles valia a pena ser defendido — é o que Ricks chama de liberdade

 

Uma conversa sobre racismo

Pequeno Manual Antirracista

Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro. Companhia das Letras, 136 páginas, R$ 24,90. Ensaio.

Este livro é pequeno, porque cabe no bolso, mas também é grande nos problemas que enfrenta. Para começar, a autora Djamila Ribeiro é de uma clareza impressionante: “O que está em questão não é um posicionamento moral, individual, mas um problema estrutural. A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo? Mesmo que uma pessoa pudesse se afirmar como não racista (o que é difícil, ou mesmo impossível, já que se trata de uma estrutura social enraizada), isso não seria suficiente — a inação contribui para perpetuar a opressão”

Ler o Pequeno Manual Antirracista é como ter a chance de conversar com alguém muito bem informada sobre um tema difícil e sair da conversa entendendo um pouco melhor como funciona o racismo de maneira geral e, talvez mais importante, como ele opera no Brasil, um país em que 56% da população se declara negra (dados do IBGE).

O livro está organizado em seis capítulos, começando com “Informe-se sobre o racismo” e terminando com “Apoie políticas educacionais afirmativas”. Apesar de se concentrar no racismo contra pessoas negras, as ferramentas que oferece podem servir para analisar outras formas de discriminação:

 

Reconhecer o racismo é a melhor forma de combatê-lo. Não tenha medo das palavras “branco”, “negro”, “racismo”, “racista”. Dizer que determinada atitude foi racista é apenas uma forma de caracterizá-la e definir seu sentido e suas implicações. A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está em nós e nas pessoas que amamos — mais grave é não reconhecer e não combater a opressão. 

Djamila ganhou notoriedade escrevendo textos em redes sociais e hoje é colunista do jornal Folha de S.Paulo. Em 2018, foi considerada uma das cem pessoas negras mais influentes do mundo — uma lista endossada pela Organização das Nações Unidas e composta por personalidades com menos de 40 anos de idade.

 

Uma comédia brasileira

Essa Gente

Essa Gente, de Chico Buarque. Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 49,90. Romance.

Na forma, este livro parece ter sido pensado como uma leitura de verão. O tamanho da fonte usada no texto é maior que o normal (diminuindo o esforço de leitura) e a mancha das páginas (a parte impressa) é menor, liberando margens confortáveis para segurar o volume ou mesmo fazer anotações, se você for esse tipo de leitor.

No conteúdo, a proeza de Chico Buarque, vencedor do Prêmio Camões 2019, a ser entregue em abril deste ano pelo Ministério da Cultura de Portugal, é costurar uma série de cartas, notícias e cenas esparsas — todas datadas como se fizessem parte de um diário — de modo que a história vai se revelando aos poucos até culminar em um susto. Quando o leitor se dá conta, está enredado nos problemas do escritor Manuel Duarte, o autor de O Eunuco do Paço Real. Este foi seu primeiro romance e também o mais famoso. Outros 11 se sucederam, mas sem o mesmo êxito. Agora, Duarte tenta concluir um trabalho enquanto lida com as mulheres da sua vida, o filho de 12 anos que o ignora completamente, as dívidas que se acumulam e a vida que passa. A história, sem dúvida, tem como cenário o Brasil atual, mais especificamente o Rio de Janeiro. Diz Duarte:  
Visto aqui do alto, o bairro não difere muito de uma favela. A barafunda de edifícios sem telhas lembra um amontoado de caixas de sapato destampadas, numa sapataria revirada em dia de liquidação. Nos seus recintos, porém, durante anos cheguei a ser feliz, casei, tive amantes, comi, bebi, joguei pôquer com amigos, frequentei escritórios, consultórios, papelarias, cabeleireiros, sapatarias e tal.

O tom, ao menos em parte da narrativa, é de reminiscências. E há um presidente que inspira pouca simpatia em Duarte, a ex-mulher que aproveita a mudança da lei para comprar uma arma (uma decisão preocupante vindo de alguém que sofre de depressão), a mesma ex-mulher que planeja ir embora para Portugal para escapar de um ambiente insuportável “para gente de esquerda e intelectuais em geral”, um conhecido que não hesita em chutar um mendigo que teve a ousadia de existir nos arredores de um clube para grã-finos, a juíza federal que dá carteiraços de todo tipo… Buarque constrói um paradoxo, uma comédia feita de momentos em que não é fácil rir. Duarte aparece como o protagonista, mas acaba desempenhando o papel de um guia, mostrando absurdos e adversidades de um país deprimente. O sentimento que melhor define Essa Gente é o desencanto.

 


IRINÊO BAPTISTA NETTO é jornalista, tradutor e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Escreveu para os jornais Folha de S.Paulo e Gazeta do Povo