Capa | 20 Livros: Parte 3

20 livros em 20 anos


O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza
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Se a pergunta fosse qual é o melhor livro publicado nos últimos 25 anos, a resposta não teria titubeio: Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. No entanto, a pergunta se refere aos últimos 20 anos e o medo de ser injusto é imenso. Vamos ao desafio: O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza. Tendo como centro da narrativa um filho com síndrome de Down, a obra mostra como as escolhas que fazemos ao longo da vida e as adversidades que nela surgem vão, cada vez mais, delineando o que somos.






Anco Márcio Tenório Vieira é professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Trecho:
 “E ele escreve de outras coisas, não de seu filho ou de sua vida — em nenhum momento, ao longo de mais de 20 anos, a síndrome de Down entrará no seu texto. Esse é um problema seu, ele se repete, não dos outros, e você terá de resolvê-lo sozinho. Fala muito em voz alta, e ri bastante — não será derrotado pela vergonha de seu filho, ainda que tenha de fazer uma ginástica mental a cada vez que se fala dele em público. Simular, quem sabe, que o filho não nasceu ainda — que alguma coisa vai acontecer antes que o irremediável aconteça.”

O filho eterno, de Cristovão Tezza, página 63, 10.ª edição, Record, 2010.



Passageiro do fim do dia (2010), de Rubens Figueiredo

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Fiquei com alguns finalistas: Alberto Mussa, Meu destino é ser onça; Luiz Ruffato, Inferno provisório; Lourenço Mutarelli, A arte de causar efeito sem causa; Tatiana Salem Levy, A chave da casa; e ainda Cristovão Tezza, Bernardo Carvalho, Fernando Bonassi. Mas meu preferido é Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo. Um antiépico magnífico, que se passa dentro de um ônibus e em algumas horas de vida suburbana. Trama, com muito pouco, toda uma leitura da vida dos de baixo, daqueles que, nas metrópoles, apenas sofrem o mundo, sem entendê-lo nem ter como dele se defender. Se destaca por sua excelência na linguagem narrativa, com um ponto de vista externo mas identificado com o personagem principal, que se alia a um tratamento do tempo nada menos que exemplar, e a criativa mescla da visão acanhada do mundo, de parte dos personagens, com a visão poderosamente universal de Darwin, evocado muito a propósito.

Luís Augusto Fischer é crítico literário e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Trecho:
“Pedro quase lia os pensamentos daquela gente, já eram familiares. Mas, como na fila, no início da viagem, Pedro sentiu também que não era um deles. Sentiu aquilo com perfeita certeza e junto veio uma sensação de alívio, mas também de remorso: a sensação de uma ponta de maldade — maldade velha, repetida, que nem era dele, pessoal. E sem mais nem menos surgiu completa na sua cabeça a imagem dele mesmo na mata do Pantanal, com aquela mesma roupa que ele estava, com aquela mesma mochila onde trazia o livro sobre o Darwin.”

Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, página 195, 1.ª reimpressão, Companhia das Letras, 2011.



Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum
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As duas últimas décadas foram prolíficas em novos autores e novas narrativas. Todavia, “década” é apenas um marco didático, que pode e deve ser ultrapassado quando se trata de literatura. Assim, prefiro indicar um livro publicado antes de começarem as “duas últimas décadas”, pois é um romance que nasceu clássico, ou seja, um texto que, mesmo datado (publicado em uma data), localizado num tempo, é atemporal. Trata-se de Dois irmãos, de Milton Hatoum, publicado em 2000, que retoma temas já desenvolvidos em Relato de um certo Oriente, de 1989. Os dois romances são “dois irmãos”, pois ambos trabalham com a memória, sondando as histórias que se contam sobre o passado das personagens, membros de famílias libanesas vivendo em Manaus. Ambos constroem uma delicadíssima trama de tempos e espaços, que revisita o regionalismo, e em que surge também o tempo da história brasileira, disfarçado como tema secundário: o do processo de modernização do país, revelando as marcas da convivência de progresso e atraso, de permanência e mudança. Como disse, um clássico; ou melhor, dois clássicos.

Tânia Pellegrini é pesquisadora do CNPq e docente Senior da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Trecho:
“Aos poucos, ela foi descobrindo que o irmão distante havia calculado o momento adequado para agir. Yaqub esperou a mãe morrer. Então, com truz de pantera, atacou. A fuga foi pior para Omar. Agora ele não tentava escapar às garras da mãe, mas ao cerco de um oficial de justiça. Pulava de jirau em jirau, pernoitava em diferentes abrigos, tetos de amigos de farra. Sabia que ia chover fogo, sabia-se emparedado. O que lhe dera na telha? Sem mais nem menos ele abandonava o esconderijo e se aventurava por aí.”

Dois irmãos, de Milton Hatoum, página 192, 6.ª reimpressão, Companhia de Bolso, 2008.



Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato

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Eles eram muitos cavalos
, de Luiz Ruffato (2001), é desses textos instigantes, cuja leitura nos marca intelectual e afetivamente. Em setenta fragmentos, impressos em diferentes tipos de letras e de variados formatos — diálogos, listas de livros, anúncios classificados, orações, recados de secretária eletrônica, cardápio, um retângulo preto, entre outros —, esse livro anunciou para mim (pois, sendo o terceiro livro publicado por Ruffato, foi meu primeiro contato com sua obra) um grande escritor da atualidade. Alternando ternura, raiva, esperança, doçura, violência, ingenuidade, decepção, seu texto nos dá um painel do cotidiano da cidade de São Paulo e seus moradores anônimos. Painel fragmentado e diversificado, como as grandes metrópoles, traçado com a linguagem experimental herdada das vanguardas do início do século XX e o projeto de representar dolorosas realidades da cidade contemporânea. Ganhador de vários prêmios e traduzido em diferentes línguas, Eles eram muitos cavalos veio para permanecer, nestes tempos voláteis e efêmeros, nas seleções dos melhores e, sobretudo, na memória de quem o lê.

Ana Cláudia Viegas é professora de Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), desenvolve pesquisa sobre a prosa brasileira contemporânea.

Trecho:
“Pensam, é fácil, mas forças não tem mais, embora seus 35 anos, boca desbanguelada, os ossos estufados os olhos, a pele ruça, arquipélago de pequenas úlceras, a cabeça zoeirenta. E lêndeas explodem nos pixains encipoados das crianças e ratazanas procriam no estômago do barraco e percevejos e pulgas entrelaçam-se aos fiapos dos cobertores e baratas guerreiam nas gretas. Já pediu-implorou para a de treze ajudar, mas, rueira, some, dias e noites. Viu ela certa vez carro em carro filando trocado num farol da Avenida Francisco Morato. Quando o frio aperta, aparece.”

Eles eram muito cavalos, de Luiz Ruffato, página 22, 1.ª edição, Boitempo Editorial, 2001.



Acenos e afagos (2008), João Gilberto Noll
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Tão curiosa quanto a lista das melhores obras é a oportunidade de comparar os parâmetros de escolha. O meu é explícito: a melhor obra é aquela que tira partido das convenções do gênero e, ao mesmo tempo, subverte-as. Acenos e afagos, João Gilberto Noll, faz — de modo brilhante — as duas coisas. Tem os ingredientes de um romance vigoroso, sobretudo o foco na complexidade identitária, nas formas de percepção de mundo, nos processos de mudança a que os sujeitos estão expostos. Mas tudo ali é convulsivo, intensamente perturbador. Categorias elementares da identidade (vivo e morto, corpóreo e incorpóreo, humano e animal, masculino e feminino, códigos de conduta individual e social) são transgredidas. O lastro realista é levado à desintegração, sem deixar de produzir, paradoxalmente, a sensação de outro tipo de realismo: sem corpos, tempos, espaços. Um (anti?) realismo da escrita (da voz?). As transformações que dilapidam a unidade do sujeito (ou a possibilidade de haver sujeito) atingem também a unidade da obra. O romanesco se desdobra e se dissolve em experiência especulativa livre, indecidível, repleta de indeterminação. Aberto à radicalidade poética da linguagem, o romance não mais se reconhece como tal.

Luis Alberto Brandão é ficcionista e professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Trecho:
“Tudo para mim chegava tarde. Se tivesse forças eu me elevaria e tentaria beijá-lo. Ele poderia estar sentindo o mesmo desejo. Vir a meu encontro e me abraçar beijando o que me restava de cabelos, enquanto eu beijaria seu pescoço e lhe lamberia o ouvido, rastejando a língua pelos exóticos labirintos da orelha. Acenaria de pijama quando meu amigo engenheiro saísse para o escritório. Na mesa cheia de lascas ele começaria os cálculos de uma nova obra. No inverno, seria melancólico ele parar para seus cálculos cedo da manhã.”

Acenos e afagos, de João Gilberto Noll, página 77, 1.ª edição, Record, 2008.

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