Capa | 20 Livros: Parte 2

20 livros em 20 anos

Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato
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O mundo que se apresenta, no começo deste século, não nos permite vê-lo em simples relação de causa e efeito, em composições lineares e resultados previsíveis. O mundo induz-nos a percebê-lo em relações não lineares e imprevisíveis. Este mundo delineia-se no Caos, mas não como ideia de desordem e sim como a possibilidade de observar um espaço multidimensional, presente nas combinações de variáveis que o definem. Este espaço pode ser qualquer metrópole, em particular São Paulo, enquanto as variáveis são os habitantes, a poluição, os sons, as luzes, os carros, os cheiros, o horóscopo, o cardápio, uma carta, o anúncio de jornal. Ao pensar em uma obra que traduza, de modo emblemático, este espaço tanto nas suas variáveis quanto na forma literária em que se manifesta (poesia, crônica, conto), a configurar uma ficção revolucionária, sou rapidamente conduzido a este atrator caótico que é Eles eram muitos cavalos, lançado em 2001, de Luiz Ruffato.

Marco Aurélio Cremasco é professor universitário e escritor. Publicou os livros de poemas Vampisales (1984), Viola caipira (1995), A criação (1997), from Indiana (2000) e As coisas de João Flores (2014), além da coletânea de contos Histórias prováveis (2007) e do romance Santo Reis da Luz Divina (2004).

Trecho:
“Nesses quinze anos tivemos três baixas (além da morte do Chico Almeida, a caminho de Curitiba): Osvaldão —Voltou definitivamente para Belo Horizonte, levando a mulher e dois filhos. Não aguentou a barra de São Paulo, vendeu tudo. De vez em quando liga, reclamando da vida. Parece que um dos filhos tem problema com drogas. Silveira — Suicidou-se faz três anos. Estava falido. Todos os negócios que bolou deram errado: restaurante, editora, videolocadora, loja de produtos exotéricos. Era solteiro e tinha problemas com a sua sexualidade. Lincoln — Morreu assassinado num assalto ao seu sobrado, na Vila Romana.”

Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, página 136, Boitempo Editorial, 1ª edição, setembro de 2001.



Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum

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Dois irmãos
nasceu clássico menos pela facilidade do clichê do que pelo perfeito equilíbrio entre a narrativa linear e jamais convencional, soberbamente construída em torno do dilacerante drama de Yaqub e Omar, e as camadas e mais camadas de leituras que suscita. À carcomida geometria dos afetos familiares, Milton sobrepõe uma poderosa reflexão filosófica sobre a dúvida e, principalmente, traça um retrato terrível do Brasil, equidistante da simplificação regionalista e do realismo banal. A Manaus de Dois irmãos é todo o mundo, feita da tensão entre o mot juste de Flaubert e o irreprimível horror de Conrad. Mas é, sobretudo, o nosso mundo, tão próximo, em que a Amazônia devastada se espraia pelos tristíssimos trópicos onde a ruína não só precede a construção, mas termina por a ela se impor.


Paulo Roberto Pires
é jornalista e professor da Escola de Comunicação da UFRJ. Autor do romance Se um de nós dois morrer e editor da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles.

Trecho:
“Zana teve de deixar tudo: o  bairro portuário de Manaus, a rua em declive sombreada por mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quase tão vital quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em foz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal,  onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mais de meio século.”

Dois irmãos, de Milton Hatoum, página 9, Companhia de Bolso, 6ª reimpressão, 2006.



Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins
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Entre os romances lançados nos últimos 20 anos, considero que Cidade de Deus, de Paulo Lins, tem tudo para ser reconhecido no futuro como um clássico. Por várias razões. A primeira é a narrativa, cheia de personagens e histórias paralelas. Ela é moderna, por ser polifônica e multifacetada, e ao mesmo tempo clássica, na medida que dialoga com Charles Dickens, por exemplo. Outra razão é a forma. O livro é estruturado em torno de três mortes, o que dá uma unidade grande à trama. Havia um grande risco que o romance perdesse força pelo excesso de tramas paralelas, e isso não acontece. Por último, Cidade de Deus contribuiu, no Brasil, para o debate sobre o crime organizado nas comunidades cariocas. Ele foi lançado numa época em que o debate sobre o assunto era influenciado por várias visões apressadas. Algumas diziam que os soldados do tráfico eram manipulados por chefes de classe média alta que moravam nos bairros nobres do Rio. Outros associavam o crime nos morros a uma nascente revolta popular. O livro, escrito após intensa pesquisa, mostra como o tráfico se forma como um fenômeno cultural dentro das comunidades, e lá dentro mesmo engendra sua própria hierarquia. Mostra também que o crime organizado nada tem a ver com revolta política — é apenas crime. Ousado e sólido na forma, provocativo no conteúdo, Cidade de Deus é um dos grandes livros lançados nos últimos tempos no Brasil.

João Gabriel de Lima nasceu em São Paulo, é escritor e jornalista. Autor dos romances O Burlador de Sevilha (Companhia das Letras, 2000) e Carnaval (Objetiva, 2006). Foi diretor de redação da revista Bravo! e é diretor-adjunto de Época, onde tem uma coluna sobre política e cultura.

Trecho:
“O corpo de Buzunga saiu em todos os jornais do Grande Rio. A Cidade de Deus, segundo a imprensa, tornara-se o lugar mais violento do Rio. O conflito entre Zé Miúdo e Zé Bonito fora qualificado como guerra. Guerra entre quadrilhas de traficantes. A rotina atroz dos combates passou a povoar as páginas policiais e a amedrontar os alheios, só informados pelos noticiários. As edições se esgotavam ainda cedo, a audiência dos telejornais e dos programas especializados no tema subiram muito na favela. Afora as vaidades dos bandidos, afloradas por se verem prestigiados com fama e temor, esses veículos eram rica fonte de informação. Por eles, sabia-se das suspeitas policiais e suas formas de enfrentamento. Não havia termômetro melhor para avaliar quanto a imprensa e a polícia sabiam.”

Cidade de Deus, Paulo Lins, página 364, 1ª reimpressão, Companhia de Bolso, 2009



Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum

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Dois irmãos
, de Milton Hatoum, é obra de um autor maduro, que já tinha dado provas de seu talento em romances anteriores. Esse romance tem todas as qualidades dos melhores exemplos do gênero: linguagem cuidada, intriga complexa e cativante, personagens consistentes e ampla significação. O universo de Hatoum é a Amazônia, e mais particularmente a cidade de Manaus, com seu clima, suas cores e seus odores. Entretanto, o romancista evita qualquer exotismo. Sua obra não oferece uma Amazônia para turistas, mas um lugar que mescla belezas e horrores, natureza luxuriante e extrema pobreza. O olhar do narrador é, ao mesmo tempo, nostálgico e amargo, poético e lúcido. Transcorrendo entre o período da 2ª Guerra até os anos da Ditadura Militar, o romance narra, em filigrana, a história da Amazônia e do Brasil. Ele nos leva a refletir não apenas sobre realidade brasileira, mas sobre o ser humano em geral, pois é também um livro sobre a memória e o esquecimento, a vingança e o perdão.

Leyla Perrone-Moisés é professora titular de literatura francesa na Universidade de São Paulo (USP). Também lecionou na Sorbonne e na Maison des Sciences de l’Homme de Paris. É autora de, entre outros livros, O novo romance francês (1966), Falência da crítica (1973) e Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro (1982).

Trecho:
“O rosto crispado de Yaqub voltou-se para o irmão. Talvez fosse o momento oportuno para se engalfinharem, se esfolarem, os dois em carne viva nas nossas ventas, a minha e a de Domingas. Yaqub balbuciou umas palavras, mas Omar não o encarou: ignorou-o e subiu a escada apoiando-se no corrimão. A tosse e os passos pesados ecoaram na casa, e antes de entrar no quarto ele gritou o nome de Domingas. O tom da voz soava como ordem, mas minha mãe saiu de perto de Yaqub. Deixou o doente berrar como um louco e eu notei um sorriso demorado no rosto dela.”

Dois irmãos, de Milton Hatoum, página 146, Companhia de Bolso, 6ª reimpressão, 2006.



Minha mãe se matou sem dizer adeus (2010), de Evandro Affonso Ferreira

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O livro marca uma decisiva virada na produção de Evandro Affonso Ferreira — como o próprio autor declararia posteriormente, nesse romance ele para de se preocupar com a vida das palavras para se concentrar na morte das pessoas, limpando sua prosa do léxico arcaizante que até então a caracterizava para se focar em questões primordiais da existência humana. O fato é que, sem perder o cuidado estilístico artesanal responsável pelas mais elevadas qualidades poéticas de sua melhor prosa, Evandro aqui abraça uma narrativa concentrada, precisa e equilibrada, sem fazer concessões nem ceder a maneirismos de estilo, pairando acima dos modismos.





Irineu Franco Perpetuo
é jornalista e tradutor literário. Colabora com a revista Concerto, TV Cultura e jornal Folha de S.Paulo, e traduziu, diretamente do russo, Pequenas tragédias e Boris Godunov, de Púchkin, Memórias de um caçador, de Turguêniev, e Vida de destino, de Vassili Grossman.

Trecho:
“É domingo. Chove choro. É choro sem lágrimas. É dor invisível feito eu. É plangência que se aquieta nas entranhas. Sou introspectivo até para sofrer. Vida toda assim: enrodilhado em mim mesmo; homem-caramujo. Ultimamente me pareço mais com homem-parede revestido de papel-palavra. Ficaria menos triste se ela minha mãe tivesse deixado pelo menos um bilhete elíptico com apenas três vocábulos: PERDÃO PRECISO PARTIR. Mas partiu sem dizer adeus. Pelo caminhar altivo da senhora quase septuagenária conduzindo bebê num carrinho desconfio que os netos chegam espargindo primavera nos avós.”

Minha mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira, página 37, 1ª edição, Record, 2010.


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