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João Antônio, um malandro fora de lugar

Vinte e dois anos depois da morte do autor de Malagueta, Perus e Bacanaço, reedições de suas obras voltam a ser publicadas — e podem explicar como o Brasil da malandragem se tornou o país mais violento do mundo

Ronaldo Bressane

     Arte: Índio San
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João Antônio na redação da revista Realidade, em 1968.

Pode-se dividir a obra e a vida de João Antônio em dois eixos: a cidade e o jogo. De modo único na literatura do Brasil, ambos os temas perpassam a totalidade de seus escritos. Do início glorioso ao fim deprimente, o escritor entranhou o testemunho direto do chão e da fala dos brasileiros em sua literatura, ao mesmo tempo em que a dinâmica do perde-ganha movimenta seu jeito de contar histórias. Os dois eixos estruturam a máquina maniqueísta de João Antônio, oscilando entre São Paulo e Rio de Janeiro, euforia e depressão, solidão e massa, ficção e jornalismo, secura e barroquismo, apego à arraia-miúda e desprezo às classes média e alta.

Um escritor dilacerado, doido e doído.

Com o relançamento de seus livros — e a reedição de alguns títulos há muito fora de circulação, bem como compilações inéditas, pela Editora 34 —, será possível ver de que forma a curva dramática da obra de João Antônio, criada ao longo dos anos 1950 até os 1990, é essencial para entender o Brasil deste século XXI. Uma curva que principia lírica e melancólica, com Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), e conclui-se raivosa e ressentida, em Dama do encantado (1996). Temos aí um projeto de país cujo jeitinho safo descambou em uma nação dividida e violenta. E mesmo a malandragem contida nos textos de João Antônio fez sua escrita dar com os burros n’água e levar a vaca da linguagem para o brejo da narrativa. 

Pela “dialética da malandragem” proposta por Antonio Candido — que vislumbrou nele um Guimarães Rosa urbano —, o protagonista da ficção perambula entre o mundo da ordem e da desordem, do lícito e do ilícito, sintetizando-se astucioso e picaresco, malemolente terceira margem do rio-texto. Tais protagonistas zanzam em um meio-fio literário que vai de Manuel Antônio de Almeida a Geovani Martins, passando por Mário de Andrade, Antônio Fraga, Marques Rebelo, Rubem Fonseca, Paulo Lins, Fernando Bonassi e Ferréz — sem contar, claro, Lima Barreto, a quem João Antônio dedicou a obra inteira, num gesto sem paralelo.

A linhagem junta escritores de estilo dessemelhante, porém irmanados na perspectiva autodescritiva destes seres que habitam o lusco-fusco entre crime e lei, ou, antes, que criam a própria lei mediante uma ética muito particular, pautada tanto pela necessidade de sobrevivência imediata quanto por uma visão individualista, solidária e artística da vida. Prostitutas, pedintes, merdunchos, pingentes, traficantes, salafrários, rufiões, bebuns, ambulantes, jogadores, sinuqueiros — a ralé das cidades. A fusão entre ética e estética de tais figuras, e a compaixão que tem por elas, a ponto de nelas dissolver-se, ganham em João Antônio uma linguagem própria, em que a sintaxe obedece e desobedece as normas cultas ao seu bel-prazer

E que prazer é ler e reler João Antônio.

Pode-se dividir suas estratégias literárias em três fases, como sugeriu Rodrigo Lacerda na tese Uma biografia literária: Os anos de formação. Em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, conto fundador de sua ética e estética, a fábula é um fiapo, mas ainda assim uma narrativa mais sólida que as ficções finais. Conta-se a história de três sagazes jogadores de sinuca especialistas em tirar dinheiro dos otários. Escória que sonha com a glória:  

“Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas imaginavam marotagens, conluios, façanhas, brigas, fugas, prisões — retratos no jornal e todo o resto —, safadezas, tramoias; arregos bem-arrumados com caguetes, trampolinagens, armações de jogo que lhes dariam um tufo de dinheiro; patrões caros aos quais fariam marmelo, traição; imaginavam jogos longínquos, lá pelos longes dos subúrbios, naquelas bocas do inferno nem sabidas pela polícia; principalmente imaginavam jogos caros, parceirinhos fáceis, que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em pensamento funcionavam. E os três comendo as bolas, fintando, ganhando, beliscando, furtando, quebrando, entortando, mordendo, estraçalhando...”

Sonhadores que acordam aos trancos e barrancos de dentro do sonho. Gente que João Antônio conhecia bem demais, morador que era do subúrbio osasquense de Presidente Altino, filho de uma dona-de-casa mulata do Rio com um caminhoneiro bandolinista de Trás- -os-Montes. Partem da Lapa, passam por Água Branca, Barra Funda, centro, até chegar a Pinheiros, e de novo voltam à Lapa. Tão lisos quanto saíram. “Falou-se que naquela manhã por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo três cafés fiados.”

Diz a lenda que João Antônio reescreveu o livro, pois os originais haviam sido consumidos pelo fogo que destruiu a casa dos pais, em Osasco. Meia-verdade, astúcia de principiante para ganhar a simpatia do público, como se descobriu anos depois, pois os originais já eram conhecidos de alguns leitores. O fato é que o incêndio existiu, assim como os prêmios que faturou — aos 25 anos, foi o primeiro escritor a ganhar dois Jabutis, Melhor Livro de Contos e Revelação do Ano —, lhe conferindo o status de garoto-prodígio. Sublinhados pela sobrancelha-taturana e a bigodeira sempre batizada na cerveja, os olhos pretos faiscavam quando o comparavam ao ídolo Graciliano Ramos, e o apelidavam de “clássico velhaco”.

Arte: Índio San
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O escritor em ação no esporte preferido: a sinuca.

Entre o jornalismo e a ficção
Na segunda fase, sua escrita ganha outro corpo: o jornalístico. Entre a estreia em 1963 e o segundo livro, Leão de chácara, passam-se 12 anos. Nesse meio-tempo, João Antônio passa o giz no taco em várias redações. Convidado a trabalhar como repórter no Jornal do Brasil, se manda para o Rio. Mas o salário não funciona e ele volta a SP para trabalhar na revista Claudia, da Editora Abril. Não esquenta a cadeira: em 1966, desenhava-se o mais arrojado experimento jornalístico brasileiro – a revista Realidade. A publicação foi tramada pelo editor Paulo Patarra e bancada pelo herdeiro da editora, Roberto Civita, e marcou época por suas pautas inventivas, pela arte sofisticada e reportagens de longo fôlego, em que os repórteres tinham muito tempo para a apuração e abertura para molhar a objetividade em técnicas literárias subjetivas. Seus colegas eram cobras como Mylton Severiano, Narciso Kalili, Sérgio de Souza, José Hamilton Ribeiro. Era o New Journalism brasileiro, e ali João Antônio deitou e rolou. 

Entrando na revista só em 1967, escreveu sete textos para Realidade. “Este homem não brinca em serviço” trata de... sinuca. “Quem é o dedo duro” desvenda a atuação dos informantes da polícia (será republicado no premiado Dedo duro, de 1982). “A morte”, discorre sobre os variados modos de morrer. Bom de perfil e de música — na infância, o pai o levava às lendárias rodas de choro na Lapa paulistana —, João Antonio enquadra a cantora Aracy de Almeida na peça “Ela é o samba”. “É uma revolução” reporta um jogo entre Cruzeiro e Atlético Mineiro em Belo Horizonte (o contista Wander Piroli, mais tarde apelidado “João Antônio mineiro”, colaborou). Em “O pequeno prêmio”, focou no universo dos apostadores do turfe de pobre da zona norte. Sua obra- -prima, porém, é “Um dia no cais”, grande reportagem sobre o porto de Santos em que o autor, que lá viveu um mês para a apuração, usou como foco narrativo duas prostitutas: Odete Cadilaque e Rita Pavuna. (Casado algumas vezes, pai de um único filho, João Antônio foi useiro e vezeiro do baixo meretrício.)

O texto foi batizado pela redação de “conto-reportagem”, e é um dos clássicos do jornalismo literário brasileiro em todos os tempos — mais tarde, seria reeditado em Malhação do Judas Carioca (1975), sob o título “Cais”. Para Bruno Zeni, que se ocupou desta encruzilhada entre literatura e jornalismo em Sinuca de malandro — Ficção e autobiografia em João Antônio (Edusp), no conto-reportagem “a informação jornalística desaparece, dando lugar a uma combinação de relato pessoal, reflexão, ensaio histórico, crônica de época e perfis de personagens desimportantes”. O conto-reportagem traz os mergulhos psicológicos, os diálogos e a linguagem rica do conto literário; já a tensão fica a cargo da rixa entre Odete e Rita e os perrengues com a polícia e os clientes. A reportagem detalha descrições de botecos, restaurantes, cabarés, armazéns, flana por gírias e gestos dos estivadores, detém-se sobre vários personagens, como Lucky Tattoo, pioneiro da tatuagem no Brasil, marinheiros, policiais, pequenos funcionários e, claro, os clientes das moçoilas.

“A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos cantões, um que outro olho aceso fica no rabo da manhã. E fica.

O botequim é xexelento, velho encardido. E teima que teima plantado. Aguenta suas luzes, esperto, junta mulheres da vida que não foram dormir, atura marinheiros, bêbados que perturbam, gringos, algum cachorro sonolento arriado à porta de entrada. Recolhe cantores cabeludos dos cabarés, gente da polícia doqueira, marítima ou à paisana. E mistura viradores, safados, exploradores de mulheres, pedintes, vendedores de gasparinos, ladrões, malandros magros e sonados. 

O boteco é mais. Agasalha traficâncias e briga. Gente encosta o umbigo ao mármore do balcão e queima o pé com bebidas. Fuá, tenderepá, pau comendo quente. Quizumbas. 

— Vai lavar roupa, sua fedorenta!

Rita Pavuna e Odete Cadilaque se pegam. Duas das que zanzam batalhando na noite, conluiadas nos trampos, nas arrumações, para surrupiar fregueses e levantar a grana, ainda que devam aturá-los. É lei — malandra que é malandra, no cais, não deve ir com trouxa. Toma-lhe o milho no jeito, debaixo de picardia e manha. Carne é carne e peixe é peixe.

Mas por umas ou por outras, de ordinário, se enfarruscam num desentendimento. E as duas acabam se encarando. Como inimigas. Salta um desacato:

— Vai lavar roupa, sua nojenta!

Seis e meia e somem as luzes dos trilhos dos bondes. Últimos músicos cabeludos, guitarras elétricas a tiracolo, passam em grupo, devagar. Entram no botequim, se chegam para o balcão. Pedem média, pãozinho, manteiga. E é como se não houvesse frege. Briga de mulher pode ir quente, gente do cais não faz fé.

— Nem vem louca que não tem. Vai cuidar da tua vida! Desguia. Sai da minha avenida.

Canalhas, cínicas igualmente e ligadas, mancomunadas na catança dos otários. Mas Rita Pavuna e Odete Cadilaque se apartam num desses tempos quentes. Uma querendo comer a outra pela perna, pela grana de algum freguês. E se afastam. Horas, horas. Cada uma para o seu canto e uma não quer nem ver a cara da outra. Piranha não come piranha.”

      Reprodução
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João Antônio dedicou toda sua obra a Lima Barreto (1881-1922), além de ter escrito um livro em homenagem ao ídolo literário: Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977). 

Mas só dura um ano e sete textos o bem-bom da Realidade — que, além de incentivar a redação a desafiar convenções, ainda pagava regiamente. Com o AI-5, a ditadura parte para cima da Abril, que precisa segurar os ímpetos libertários do editor Patarra. Comunista de sete costados, este pede demissão, e é seguido por 14 colegas — entre eles, João Antônio. Volta ao Rio para trabalhar na Fatos e Fotos, outro emprego que acaba largando. E inicia sua carreira como freelancer, que se estenderia pelas décadas seguintes, colaborando tanto na “imprensa nanica” (termo inventado por ele), como O Pasquim e Movimento, ou, mais tarde, em grandes órgãos como O Globo, JB e Tribuna da Imprensa. Parece que finalmente este trabalho jornalístico — material inédito em livro, reunindo longas reportagens literárias, perfis musicais e crônicas sobre o cotidiano carioca — integrará a reedição de sua obra, a começar este ano.

Antes de virar eterno frila, sina de 99% dos jornalistas brasucas, quase teve outro emprego fixo, e no Paraná. Em 1975, um político rico de Londrina convidou parte da equipe da Realidade para um empreendimento semelhante: o jornal Panorama. No entanto, o político não segurou a onda da repressão, e o jornal só rodou um ano — e nove textos de João Antônio. A estada paranaense teve a importância de trazer inspiração para a criação de seu Macunaíma particular: ali nasceu Jacarandá Bandeira. Andarilho metamorfo, podia ser publicitário, torcedor, lavrador, burguês endividado, juiz de futebol, guardador de carro (este, uma maravilha de lirismo e humor), em textos que em 1993 seriam reunidos no volume Um herói sem paradeiro

“— Chefe, estou sem trocado. 

Disse na próxima lhe dava a forra.

Chefe, meus distintos, é o marido daquela senhora. Sim. Daquela santa mulher que vocês deixaram em casa. Isso aí – o marido da ilustríssima. Passeiam e mariolam de lá pra cá num bem-bom da vida. Chefe, chefe... Que é que vocês estão pensando? Mais amor e menos confiança.

Mas um guardador de carros encena bastante do mágico, paciente, lépido ou resignado. Pensa duas, três vezes. E fala manso. Por isso, Jacarandá procura um botequim e vai entornando, goela abaixo, com a lentidão necessária à maturação. Chefe... o quê! Estão pensando que paralelepípedo é pão-de-ló?”

Uma das sacadas geniais de João Antônio é colar-se a seus personagens em um misto de sobranceria e infortúnio, numa eterna montanha-russa emocional que, sentimos, molda a psicologia do próprio autor. Mais importa a criação das dicções ética e estética de suas figuras bipolares — vendo na mesma lupa primeira e terceira pessoas, numa identidade total entre objeto de estudo, ambiente pesquisado e observador. “O caminho é claro e, também, por isso, difícil — sem grandes mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos e não que rele neles. Nisso, a sua principal missão — ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo a corpo. A briga é essa. Ou nenhuma”, definiu, no ensaio “Corpo a corpo” (1975).

Nesta segunda fase, o enredo desliza, muitas vezes o conto é estruturado sobre anedotas enfileiradas, perfazendo um retrato com traços ora ligeiros ora derramados, em que a linguagem, quase barroca, é mais necessária do que a tensão. Assim engrenam “Guardador” ou “Leão de chácara”, contando com todo o poder de observação e pesquisa antropológica de João Antônio. Na rua, em vez de bloquinhos, ele usava papel de maço de cigarro para fazer anotações, e passava a limpo todas as gírias coletadas. Um caderninho com tais pescarias acompanha a edição de Contos completos, publicado pela Cosac Naify — que, com suas edições luxuosas, foi a casa responsável por elevar João Antônio, até então visto como mero Rabelais dos pobres, ao status de grande autor brasileiro (uma Flip homenageando João Antônio cairia bem, não? Sem dúvida mais divertida que uma edição louvando o chato do Euclydes da Cunha...).

     Arte: Índio San
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 Em 1977, o cineasta Maurice Capovilla adaptou para o cinema o conto Malagueta, Perus e Bacanaço. Na imagem João Antônio conversa com os atores do longa

Entre o presente e o passado
Depois de um colapso nervoso — talvez motivado pela birita —, João Antônio interna-se no Sanató- rio da Muda da Tijuca (RJ) por dois meses, e lá conhece Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, jornalista carioca que foi amigo de Lima Barreto. A estadia entre os malucos rende dois livros, hoje raros, mas que devem ser republicados pela Editora 34: Casa de loucos (1976) e a quase-biografia Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977).

A terceira e última fase, nos anos 1980, é marcada pela deambulação entre São Paulo, Rio de Janeiro, Amsterdã e Berlim, onde viveu por mais de um ano, ao ganhar uma residência literária (a mesma vencida por Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão). E também pela frilância esparsa, que fez com que o escritor fragmentasse, caricaturasse e pirateasse o estilo, recontando anedotas e sacadas já manjadas, escapando da sonhada escrita de um romance — que nunca veio. Tinha se afastado da malandragem e já não se identificava com a arraia-miúda, vendo-se como um falso figurante na desdenhada classe média, ou “classe mérdea”.

Sobrevém a mágoa de não se achar parte de lugar nenhum, sentimento que preenche o último grande texto, Abraçado ao meu rancor (1986). (A mágoa do despertencimento, presente na obra de escritores miscigenados como João Antônio e Lima Barreto, pretos demais para serem brancos e brancos demais para serem pretos, é uma linha de investigação importante nos estudos pós-coloniais contemporâneos.) Dilacerantemente autobiográfico — gênero que já havia manejado no divertido “Paulo Melado de Chapéu Mangueira Serralha”, em que relata a juventude —, este ensaio ficcional revisita lugares então irreconhecíveis: a malandragem da Lapa, o chorinho dos subúrbios, o charme do centro de São Paulo, todos triturados pela urgência do capitalismo, que a tudo gentrifica e desgentifica. A desigualdade havia aumentado e formado um abismo entre as classes, roendo a velha classe daquela lírica miséria. Nesta via-crú- cis em busca da picardia de um sambista elegante como Germano Matias — picardia talvez idealizada demais —, só encontra uma cidade cindida, truculenta e artificial:

“Aposentaram os bondes, enlataram a cerveja, correram com o sambista, enquadraram até os poetas. Lanchonetaram os botequins de mesinhas e cadeiras; pasteurizaram os restaurantes sórdidos do centro e as cantinas do Brás, mas restaurante que se prezava era de paredes sujas, velhas! Plastificaram as toalhas, os jarros, as flores; niquelaram pastelarias dos japoneses, meteram tamboretes nos restaurantes dos árabes. Formicaram as mesas e os balcões. Puseram ordem na vida largada e andeja dos engraxates. Na batida em que vão, acabarão usando luvas. Caso contrário, farão cara de nojo ao bater a escova no pisante do freguês. Ficharam, documentaram os guardadores de carros. Silenciou-se a batucada na lata de graxa. Acrilizaram a sinuca.”

No perde-ganha da cidade, perdeu a aposta na vida. Depois de dez anos diluindo a cachaça do conto-reportagem em crônicas aguadas, morreria de infarto, aos 59, sozinho no apartamento em Copacabana — o corpo descoberto três semanas após a morte, contribuindo para a lenda maldita de escritor ferrenhamente solitário. Já desiludido com o Brasil da abertura democrática, que havia transformado a utopia do pobre solidário e altivo na distopia do pobre consumista e violento, não teve tempo de reinventar sua saborosa prosa e voltar a sorrir. João Antônio segue vivo, porém, feito assombração: numa época promissora, ele já atentava para os perigos de nunca resolver a desigualdade — seus personagens continuam zanzando pelas ruas, e nada indica que desapareçam tão cedo. Segue vivo na lembrança que a malandragem briosa e brilhante foi substituída pelas lambanças do alto capital, que corrompe ouro por lama. Segue vivo para explicar como os choques românticos do povo-povo chué deram nesse pega-pra-capar em que cada um é por si, Deus contra todos. Segue vivo na gíria e na chinfra inigualável de seus personagens, no infinito estalado das bolas coloridas sobre o pano verde.  


RONALDO BRESSANE é escritor e jornalista, autor do romance Escalpo (Reformatório), entre outros livros.