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O gênero (quase) fora da lei

Biografias são tidas como um novo fenômeno contemporâneo; no Brasil o número de publicações destinadas ao gênero cresceu cerca de 20% nos últimos três anos

Murilo Basso

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O crescente interesse do leitor brasileiro por relatos biográficos torna cada vez mais evidente o fortalecimento da biografia como gênero literário. De acordo com relatório divulgado pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas (FIPE), encomendado pela Câmara Brasileira do Livro e pelo Sindicato Nacional de Editores de Livros, entre 2008 e 2011 o número de publicações do gênero aumentou cerca de 20% — em 2009, por exemplo, foram produzidos 492.497 exemplares na área biográfica.

Mesmo diante de um cenário claramente positivo, no Brasil, tornaram-se comuns casos em que biografias encontraram problemas para chegar às prateleiras. Ruy Castro, por exemplo, teve o livro Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha impedido de circular por 11 anos. A lista conta ainda com biografias de nomes como Roberto Carlos, Noel Rosa, Manuel Bandeira, Pixinguinha, Guimarães Rosa, Raul Seixas e Di Cavalcanti.

O imbróglio

No início de abril, foi aprovada a proposta que autoriza a divulgação de imagens e informações de personalidades consideradas públicas. De acordo com o texto, passa a ser possível proteger a publicação de material referente “a personalidade cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. Dessa forma o projeto permite a publicação de biografias não autorizadas, assim como a realização de filmes que retratem a vida de personalidades públicas.

“É algo vital não apenas para escritores e editores, mas para o país”, diz a deputada Manuela D'Ávila, que desde 2011 discute a questão no Congresso Nacional. “É um absurdo que beira o surreal os protagonistas da vida brasileira terem direito à proibição. É sem precedentes. Nenhuma outra sociedade democrática tem algo parecido”, completa a parlamentar.

O texto, que já havia sido aprovado pela então Comissão de Educação e Cultura, segue agora para o Senado. As principais alterações no artigo 20 do Código Civil se referem aos quatro itens que atualmente permitem a publicação de relatos biográficos: autorização direta da pessoa exposta; necessidade da administração da Justiça; manutenção da ordem pública; ou consentimento de parente se a pessoa exposta já tiver morrido. 

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Fernando Morais e Ruy Castro, dois dos principais
biógrafos brasileiros.


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História da sociedade

Para o deputado Newton Lima, autor do atual Projeto de Lei, inicialmente, o código se preocupou em fortalecer certos direitos individuais, como a privacidade, mas esqueceu de diferenciar o cidadão privado da personalidade pública, ou seja, um texto criado para proteger o cidadão comum acaba cerceando o acesso à informação. “O que queremos mostrar é que, ao se escrever a biografia de um determinado personagem de nossa História, seja um político, um artista ou até mesmo um anônimo ou um homem simples do povo, o que se está escrevendo é a própria história da sociedade na qual o personagem está inserido, uma vez que não existe sujeito histórico isolado, sem uma contextualização de sua vida no espaço e tempo históricos”, explica Newton.

Um dos casos mais emblemáticos envolve o cantor Roberto Carlos. Em janeiro de 2007, um mês após a publicação da obra Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar de Araújo, alegando invasão de privacidade, o cantor acusou o autor do livro cível e criminalmente. Rapidamente, Roberto ganhou uma liminar que obrigou a Editora Planeta a recolher todos os exemplares sob multa diária de R$ 500 mil. Na audiência de conciliação, a editora optou por retirar o livro de circulação em troca da extinção do processo. Por meio de sua assessoria, a Planeta alegou que preferia não mais se manifestar sobre o caso, uma vez que na época se tratou de um episódio muito traumático para os envolvidos.

A deputada Manuela acredita que o caso é um exemplo claro de censura prévia. “Lembra as apreensões de jornais na época da ditadura. Por exemplo, hoje eu não tenho o poder de censurar previamente um jornal a partir de um texto publicado. Por que personalidades teriam esse direito?”, questiona. Segundo ela, com a aprovação da lei, biografados poderão continuar recorrendo ao judiciário, mas precisarão provar que a obra feriu algum de seus direitos. “Ninguém impede que a pessoa que se julgue prejudicada busque seus direitos. O que buscamos é corrigir injustiças como esta.”

Identificação e emoção

Independentemente dos entraves impostos pela legislação brasileira, a biografia caminha a passos largos no mercado editorial nacional. Guilherme Fiúza, autor da biografia do humorista Bussunda e do ator Reynaldo Gianecchini, afirma que o retrato atual da expansão do gênero se deve à fácil identificação entre leitor e personagem. “É algo muito sedutor e ao mesmo tempo cômodo: você é convidado a viver a vida de outra pessoa sem correr nenhum risco. O leitor vivencia o que não viveu e em uma biografia, isso se torna muito verdadeiro, afinal, imediatamente você identifica o que faria em determinada situação”, diz.

No Brasil, a popularização do gênero se intensificou na década de 1990, com a publicação de obras como Chatô, o rei do Brasil, biografia de Assis Chateaubriand escrita por Fernando Morais, e Estrela solitária — um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro, obra vencedora o Prêmio Jabuti em 1996. A partir desse momento, o gênero se modernizou, expandindo suas possibilidades narrativas, e então a biografia passou a também pedir um olhar jornalístico, pois apenas técnicas meramente literárias não mais bastavam. “Além das técnicas de escrita, que podem incluir dotes jornalísticos ou literários, uma biografia exige uma pesquisa meticulosa concentrada em um personagem. Sem essa base de pesquisa, o texto por si não funciona”, analisa Jorge Caldeira, autor da biografia do empresário Mauá e do músico Noel Rosa.
Fiúza acredita que o grande trunfo da biografia moderna é atrair o interesse do leitor para a obra o mais cedo possível. “São dois fatores determinantes: linguagem e a mensagem. Então você acabará no ingrediente primordial, que é a emoção. Ao longo desse trabalho percebi que a emoção é um parâmetro quase infalível. Fala-se da emoção barata, mas é muito difícil você ter realmente emoção em cima de um fato desimportante. Os fatos realmente importantes são emocionantes. Acho que nessa linha, o legal é o narrador ser um parceiro do leitor, entregando a ele o que há de melhor na história”.

Falta de distanciamento e contexto histórico
De qualquer forma, o fundamental é que a personalidade retratada seja interessante e tenha importância histórica, com alguma influência na sociedade. “Essa influência pode ser  para o bem ou para o mal. Um ditador sanguinário, um assassino em série, enfim, figuras desse tipo também podem despertar o interesse de um escritor”, pondera Gilvan Ribeiro, autor de Casagrande e seus demônios, biografia do ex-jogador de futebol Walter Casagrande Jr. lançada recentemente e que está na lista dos livros mais vendidos do país.

O biógrafo também afirma que não é necessário um distanciamento entre autor e personagem retratado para a construção de um bom relato biográfico. “Em relação ao meu caso específico com o Casagrande, eu o tinha como ídolo na adolescência, algo comum entre as pessoas da minha geração por tudo o que ele representou naquela época. Atualmente, temos uma relação de amizade, fruto da convivência de tantos anos. A proximidade ajudou a entendê-lo melhor e contribuiu para o conhecimento de fatos relevantes”, completa.

Outro fator levantando é uso do gênero como elemento para retratar períodos históricos. Caldeira, através da biografia de Guilherme Pompeu de Almeida e de dados da economia e do pensamento político da época, conseguiu retratar a história de São Paulo no séc. XVII — mesmo caminho seguido em Mauá, que aproveita para traçar um perfil da economia do Brasil de Dom Pedro II. Para o autor, grandes personalidades podem ser o ponto de partida para retratos de recortes de períodos históricos. “Em alguns casos como esses, a biografia realmente permite ligar um personagem a um tempo”, diz. “Quanto ao nosso presente, há uma grande dificuldade para se fazer algo nesta linha. Ainda não tenho uma ideia exata de quem seria uma figura de nosso tempo.”

A biografia no imaginário popular
Relatos sobre a vida de grandes personagens sempre mexeram com o imaginário popular, sejam eles histórias vividas por figuras mitificadas em um passado distante ou por celebridades contemporâneas. Os primeiros grandes biógrafos, de Plutarco, no século I, a Samuel Johnson, no século XVIII, analisavam grupos específicos de acordo com sua relevância social e hierárquica, como nobres, santos e poetas. Em contextos onde a posição social era o aspecto mais relevante a qualquer indivíduo, fatos da vida privada se tornavam irrelevantes — na época, com limitado conhecimento sobre fenômenos sociais, o foco era direcionado à manifestações divinas que diferenciavam o grupo em questão e justificavam sua posição hierárquica.

Já no século XIX, com o desenvolvimento da psicanálise e consequentemente da interpretação do comportamento humano, surge uma valorização do indivíduo sobre o grupo e com isso uma obrigatoriedade de detalhar todos os aspectos da vida do personagem retratado. “No mundo saxão, onde a biografia é um gênero comum, a individualidade é considerada um valor. No caso brasileiro, até pouco tempo atrás, havia uma certa prudência com relação a este valor, que agora está se dissipando”, analisa Jorge Caldeira. “Biografia é um gênero literário misto, um cruzamento entre individualidade e coletivo. Era pouco praticada em nosso país até uma década e meia atrás, deixava um enorme vazio. Mas agora este espaço está sendo ocupado”, completa.

A popularização dessas áreas de conhecimento trouxe para o senso comum uma relação de causa e consequência entre as conquistas de grandes homens e os aspectos de suas vidas. O objetivo, então, passou a ser expor os detalhes da vida privada que provocavam identificação entre leitor e biografado, como uma fonte de inspiração. Do mesmo modo, no atual contexto histórico-social caracterizado por individualidade e individualismo, a narrativa biográfica serve de ponte entre o leitor e outros indivíduos, seu universo particular e outras vidas. Por serem baseadas em fatos reais, elas conquistam um espaço de preferência entre os leitores que antes optavam por obras de ficção, o que explica a constante presença de obras biográficas entre as listas de mais vendidos.

“Biografias despertam o interesse do público pela questão histórica. Por desvendarem personagens reais e conhecidos, há uma curiosidade natural em saber mais a respeito deles. Mas esse interesse só vale para biografados com conteúdo e histórias bem contadas. Não adianta pegar qualquer celebridade e relatar uma porção de bobagens. O leitor não é burro”, conclui Gilvan.

Ilustração: Marcelo Cipis

Música para ler

Da Redação

Se as biografias se inserem como um gênero forte no mercado editorial, há um subgênero que também ganha cada vez mais força. São as biografias e autobiografias de músicos, movimentos musicais e celebridades instantâneas do show business. Nesse nicho musical, cabe quase tudo: desde livros sobre a vida de Justin Bieber — há sete biografias sobre o astro mirim disponíveis no site da Amazon — até coleções importantes que resgatam grandes nomes da música brasileira, como “Ouvido Musical”, coordenada pelo jornalista e pesquisador Tárik de Souza para a Editora 34. Ao todo, desde a metade dos anos 1990, foram lançados 25 títulos na coleção. A editora ainda lançou outros 20 livros, em separado, sobre os mais diferentes períodos da nossa música. Obras que compõem um painel amplo de nossa produção musical, com retratos inteligentes de figuras ímpares como Mario Reis e Jackson do Pandeiro.

E, aos poucos, as grandes figuras da música brasileira vão tendo suas vidas contadas em livros que, quase sempre, se tornam um êxito editorial. Vale tudo — O som e a fúria de Tim Maia, escrita por Nelson Motta, segundo a Editora Objetiva, vendeu 130 mil exemplares desde que foi lançada, em 2007. Chega de Saudade e Estrela Solitária, ambos de Ruy Castro, passaram a casa dos 80 mil livros vendidos.

Dias de luta, escrito pelo ex-editor da revista Bizz Ricardo Alexandre, estava há anos fora de catálogo e chegava a ser vendido por até R$ 500 em sebos do país. O livro, que faz um recorte biográfico da cena de rock brasileiro nos anos 1980, acaba de ganhar nova edição, revista e ampliada pelo autor.

E o rock and roll, Brasil?

E, se o mercado fonográfico se dissolveu, não poucos músicos que faturavam nas décadas de 1980 e 1990 agora tentam rechear a conta corrente com dinheiro a partir de livros com viés biográficos. Humberto Gessinger, dos Engenheiros do Hawaii, já escreveu e publicou cinco obras, como Pra ser sincero, Mapas do acaso e Nas entrelinhas do horizonte, nas quais vale quase tudo, como incluir letras de canções, diário de viagem e fragmentos do percurso artístico. Os fãs gostam. Os detratores, nem tanto — mas os adversários de Gessinger nunca engoliram nada que ele fez, nem as músicas.

O ex-vocalista do Ira!, Nasi Valadão, valou a roupa suja em público com o livro A ira de Nasi, que conta com a ajuda de dois jornalistas, os reais autores da obra: Mauro Beting e Alexandre Petillo. Nas 320 páginas, o rockstar barraqueiro revela detalhes dos 26 anos em que esteve na banda, incluindo a sua relação com drogas e o conflito com Edgard Scandurra — o que colocou um ponto final na cultuada banda.

Evidentemente que esses livros, tanto do Gessinger e como Nasi, apresentem textos menos refinados do que o leitor pode encontrar nas biografias assinadas por Ruy Castro e Fernando Morais, além de recortes mais tendenciosos (para o ponto de vista do autor) e com menos páginas e profundidade. São, enfim, variações do fenômeno das biografias. É o vale tudo do mercado editorial brasileiro.

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