Cândido seleciona dez personagens marcantes da literatura mundial

emilia

Emília

A boneca de pano criada por Monteiro Lobato (1882-1948) emplacou e está no imaginário dos leitores brasileiros. O escritor disse em entrevistas que Emília foi elaborada para ser uma personagem secundária, mas adquiriu força e surpreendeu. Lobato tem uma galeria de personagens célebres, entre eles, Pedrinho, Narizinho, Dona Benta, Quindim, Rabicó, mas não poucos leitores dizem que Emília é a favorita. Ela faz tudo o que as crianças gostam de fazer e tudo aquilo que os adultos gostariam de realizar se pudessem: fala o que pensa, e pensa sem limites. É rebelde. Não hesita em enfrentar e afrontar seja lá quem for, inclusive convidados que, eventualmente, visitam o Sítio de Dona Benta. É, para usar uma expressão contemporânea, politicamente incorreta no trato, entre outras personagens, com Tia Nastácia, a empregada que a costurou e tornou possível a sua existência. Tirana, obrigou o personagem Visconde de Sabugosa a escrever um livro que ela quer assinar, o Memórias da Emília, onde ela, e principalmente ela, aparece com destaque. Mas o Visconde decidiu desconstruir Emília: “Emília é uma tirana sem coração. Não tem dó de nada. […] Também é a criatura mais interesseira do mundo. Tudo quanto faz tem uma razão egoística. […] Emília é uma criaturinha incompreensível. […]”. Então, Emília surpreende Visconde, lê o conteúdo e aceita as críticas: “É isso mesmo. Sou tudo isso e ainda mais alguma coisa.” A bonequinha que nasceu muda e foi curada com uma “pílula falante” é irresistível: ela é um espelho para todos nós.

 

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Macunaíma

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente.” Assim Mário de Andrade anuncia a chegada de seu personagem mais famoso, chamado logo no título de “herói sem nenhum caráter”. O personagem foi criado para retratar seres lascivos, malandros, preguiçosos e sonhadores. Macunaíma sai da selva amazônica, onde vivia preguiçosamente à base de comida e sexo, e vai para São Paulo a fim de recuperar a muraquitã — um talismã que dele foi furtado e se encontra com o mascate peruano Venceslau Pietro Pietra, na verdade o gigante Piaimã. Macunaíma, apesar de sua gênese picaresca, dá a deixa para que o leitor identifique diversas questões caras ao nosso povo, como as origens indígenas nem sempre valorizadas e, o que é mais pulsante na obra, traços da personalidade do povo brasileiro — negados por uns, exaltados por outros. Mas Macunaíma é o pilar de um tipo de literatura que pouco tomou forma no Brasil, a literatura de humor, picaresca, em que os personagens conseguem rir de sua condição existencial — seja ela qual for. Um tipo de humor que faria eco também na obra de Oswald de Andrade, parceiro de geração de Mário que escreveu pelo menos dois romances célebres de nossa literatura, Serafim Ponte Grande e As memórias sentimentais de João Miramar. Macunaíma foi escrito como um passatempo de férias. Mário se isolou com um tio doente e a companhia de alguns livros, entre eles a obra etnográfica do antropólogo alemão Theodor Kuch-Grünberg que havia pesquisado as lendas e os mitos do Norte brasileiro, e o ensaio Retrato do Brasil, escrito por Paulo Prado também em 1928. Segundo a professora e ensaista Gilda de Mello e Souza, “Macunaíma logo se transformou no livro mais importante do nacionalismo modernista brasileiro. A impressão fulminante de obra-prima que os companheiros de Mário de Andrade tiveram na época ao tomar contato pela primeira vez com o manuscrito, permanece até hoje”.

 


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Nelsinho

Em Curitiba nada parece ser como deveria. O personagem mais

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emblemático da literatura local é um Vampiro que não gosta de sangue, mas sim de sexo. Logo na capital mais fria do país surgir um homem tão libidinoso? Nelsinho, protagonista dos contos de O Vampiro de Curitiba, é mais um rebelde, um outsider que subverte as tradições de uma cidade careta, do que um tarado — sem deixar de sê-lo, pois logo na largada do livro Nelsinho violenta uma vendedora de loja. “Tem piedade, senhor, são tantas, e eu tão sozinho”, reclama o herói e sai à caça pela cidade fria, sem pestanejar. Nelsinho não faz distinção, seu coração é grande, há afeto para todas: da ex-professora à prostituta de rua. O anti-herói de Trevisan é descrito como magro, bigodinho e cabelos bem aparados. Tem treze anos segundo a descrição policialesca empreendida no conto “Debaixo da Ponte Preta”, em que Dalton Trevisan eterniza um não-ponto turístico da capital paranaense. Mas a realidade, para o escritor, é apenas uma convenção frágil. Virando a página, Nelsinho já é homem feito, sagaz e atento. Só o que não muda é seu apetite sexual, sempre em dia. Quando publicou O Vampiro de Curitiba, em 1965, Trevisan já era uma autor em pleno domínio de seu ofício, com pelo menos dois livros candidatos a clássicos no currículo, Novelas nada exemplares e Cemitério de elefantes. Portanto, as aventuras de Nelsinho trazem todas as características que consagram a literatura do escritor, como a síntese, o uso intensivo de elipses e a busca por um retrato poético das “desgraceiras” do cotidiano. A diferença é que em O vampiro de Curitiba Dalton Trevisan e sua singular literatura dão forma a um personagem tão emblemático que ganhou vida própria fora dos livros, a ponto de ser confundido com seu criador.


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Capitu

Em 1999, um século após Machado de Assis publicar Dom Casmurro, o Supremo Tribunal Federal fez um julgamento da personagem Capitu: ela traiu ou não o marido Bentinho? O jurista José Paulo Sepúlveda Pertence, ministro do STF, decidiu pela absolvição de Capitu, Capitolina de Pádua Santiago. No entanto, apesar da absolvição, o juiz confessou a sua convicção, particular, de que ocorreu adultério. Márcio Thomaz Bastos, advogado e ex-presidente da OAB, atuou na acusação, e Luiza Nagib Eluf, procuradora de Justiça em São Paulo, defendeu Capitu. Os escritores Carlos Heitor Cony, Marcelo Rubens Paiva, o historiador Boris Fausto e a escritora Rosiska Darcy de Oliveira foram convocados como testemunhas. O exercício jurídico, que aconteceu nas dependências do jornal Folha de S.Paulo, dá a medida de quem é Capitu: uma personagem criada pela imaginação de Machado de Assis, mas que está presente no imaginário de todo um país. A narração de Dom Casmurro é feita pelo personagem Bentinho, já na velhice. Ele demonstra ciúme da esposa e sugere que ela o traiu com o seu melhor amigo, Escobar — aquele que tinha parentes em Curitiba. Capitu é descrita como uma mulher de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” ou e até portadora de “olhos de ressaca”, expressões misteriosas, que podem dizer tudo (ou nada). Muitos duvidam que ela traiu o marido, pela falta, evidente, de provas. O escritor Dalton Trevisan tem certeza do adultério: “Se a filha do Pádua não traiu, Machadinho se chamou José de Alencar.”

 

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Tom Sawyer

Ele é um dos personagens mais conhecidos nos Estados Unidos. E, também, por leitores em todo o mundo. Tom Sawyer é o protagonista de livros do escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910), principalmente As aventuras de Tom Sawyer. O pequeno Tom é aquilo que se pode chamar de danadinho. Ele é órfão, vive com a sua tia Polly, o irmão Sidney e a prima Mary em uma pequena cidade situada nas margens do Rio Mississipi, no sul dos Estados Unidos, no fim do século XIX. Em As aventuras de Tom Sawyer, o autor apresenta o personagem: Tom não gosta de estudar e, no colégio, faz bagunça, é repreendido pelo professor. Faz amizade com um menino que é considerado o pior exemplo da cidade, o Huckberry Finn. Juntos, pintam e bordam. Fogem em um barco para viver como se fossem piratas. Presenciam um crime e, apesar de em um primeiro momento, jurarem não contar nada, vão ajudar as autoridades locais a perseguir e prender os criminosos. Tom percorre aquilo que os estudiosos chamam de a jornada do herói: ele está aparentemente sossegado e, então, surge um problema e ele precisa, mais que resolver o impasse, provar por meio de atitudes que merece ser respeitado. O texto de Twain, considerado o pai da literatura norte-americana moderna, é contagiante. As aventuras de Tom Sawyer não são, necessariamente, um livro para crianças. Adultos também atravessam as páginas seduzidos pela narrativa e pelo comportamento de Tom: ele é o menino que todos gostaríamos de ter sido: divertido, aventureiro em busca de aceitação.

 

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Quixote

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Quixote — Alonso Quijano, mais conhecido como Dom Quixote de La Mancha, é considerado por parte da crítica literária um dos maiores personagem de toda a História. Modesto fidalgo rural, Quijano era o que se poderia chamar de um homem comum de seu tempo. Gostava de caçar, era um comedor de lentilhas e vestia calças de veludo para ir a festas. Estava com 50 anos e era “rijo de compleição, seco de carnes e enxuto de rosto. Seu principal passatempo, que lhe consumia dias e noites inteiros, era ler livros de cavalaria. Foi assim, página por página, envolto por aventuras, desafios e amores, que Alonso foi, lentamente, se transformando no Quixote que hoje, mais de 400 anos depois da publicação do livro de Miguel de Cervantes, ainda celebramos. Envolto por desafios, aventuras e amores que lia nos livros de cavalaria, o herói ficou tão impactado, que suas leituras “lhe secaram o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo”. E é essa “loucura” que fez de Quixote um personagem tão singular e seu nome sinônimo (quixotesco) utilizado até por gente que nunca leu o livro de Cervantes. Desajuizado, Quixote montou em seu pangaré, o igualmente singular Roncinante, catou umas armas que pertenciam a seus bisavôs, remendando-as com papelão e deu adeus à ama, à sobrinha e a seus dois melhores amigos — um vigário e um barbeiro — com quem convivera até então. Autoproclamado cavaleiro andante, saiu galopando em busca de aventuras, que a cada lance, tornam-se desventuras. Mas são tantos os momentos épicos e marcantes de Quixote — a amizade com Sancho Pança, as batalhas com os moinhos de vento e com tonéis de vinho, a presença de Dulcineia — que é impossível destacar apenas uma ou outra passagem.

 

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Leopold Bloom

Um dia da vida de Leopold Bloom foi suficiente para que o

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personagem criado por James Joyce fosse celebrado mais de 90 anos depois de sua aparição em livro, em 1922, quando Ulysses, a obra máxima do autor irlandês foi publicada na França. Judeu de meia-idade que trabalha como publicitário em Dublin, na Irlanda, Bloom até hoje é lembrado e festejado, especialmente em 16 de junho, data em que se passa o livro e quando é comemorado o Blomsday. O enredo gigantesco, de quase mil páginas, acompanha 24 horas da vida de Bloom. Ele acorda, toma café, vai ao trabalho, comparece ao enterro de um amigo, almoça, vai à biblioteca, ouve música em um pub, caminha à beira mar, vai a um bordel e volta para casa. Aparentemente um dia como outro qualquer na vida de um homem comum. Mas nas mãos habilidosas de um renovador da linguagem literária como Joyce, a vida de Bloom se transforma em uma odisseia, palco para reflexões filosóficas, debates sobre religião e o sentido da humanidade. Segundo a crítica, Joyce quis mostrar como o fluxo de cada vida é tão heroico como o mite de Ulisses, daí a referência do título. Para o também romancista Vladimir Nabokov, “ao compor a figura de Bloom, a ideia de Joyce é colocar entre os endêmicos irlandeses da sua Dublin natal alguém que seja simultaneamente irlandês e exilado, e ovelha negra, como ele, Joyce”.

 

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Raskolnikóv

O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil considera Raskolnikóv, o protagonista do romance Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), um dos personagens mais importantes da história da literatura. E, de fato, a opinião de Assis Brasil é, não apenas pertinente, mas compartilhada por vários escritores, estudiosos e leitores. Raskolnikóv, ex-estudante de Direito, é um sujeito sem dinheiro que sonha em se tornar notável devido a alguma ação. Apesar de contrariado, em luta contra a própria consciência, ele comete um crime. Assis Brasil explica porque considera o personagem um marco da literatura: “Raskolnikóv passa todo o romance dividido entre a culpa pelo homicídio e a busca de razões para perdoar-se. Seu drama não é evitar que a polícia o descubra, mas, sim, achar uma fórmula de compromisso que lhe permita viver e, se possível, ser feliz — o que de antemão sabemos que não conseguirá. É esse conflito pessoal que sustenta Crime e castigo.” O escritor e jornalista Stefan Zweig (1881-1942) escreveu que os estados de alma absurdos de Crime e castigo preparam um assassinato, enquanto os nossos nervos têm, desde muito, a intuição de um drama terrível: “O retardamento da ação é um dos requintes com que se embriaga a sensualidade de Dostoiévski; são pontos de agulha enfiados à flor da pele.” O escritor Dalton Trevisan, por sua vez, aproveitou a fama do personagem russo para, por meio da ficção, definir o curitibano: “Em cada esquina de Curitiba um Raskolnikov te saúda, a mão na machadinha sob o paletó.”

 

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Alice

“Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada para fazer.” Dessa maneira começa o lendário Aventuras de Alice no país das maravilhas, escrito por Lewis Carroll — e publicado em 1865. A personagem estava, a exemplo do que a primeira frase do livro mostra, entediada e, subitamente, cai dentro de uma toca de um coelho e, a partir daí, é transportada para um lugar muito diferente de sua realidade. “Caindo, caindo, caindo. A queda não terminaria nunca?”, ela se questiona. Os estudiosos costumam afirmar que o enredo do livro de Carroll suporta as mais variadas interpretações: metafísica, política e até mesmo freudiana. E, além de ser uma obra com abertura para diversas simbologias, a saga de Alice inclui alusões ou, falando claramente, alfinetadas do autor dirigidas a amigos e inimigos. Alice teria, no enredo, viajado para um país distante ou a aventura não teria passado de um sonho? O leitor pode decidir e, mais que tudo, o livro se abre para crianças e adultos — ambos podem viajar pelo texto de Carroll, que também escreveu outro título para a personagem, o Alice através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Reza a lenda que Carroll se inspirou em Alice Liddell, filha de um amigo, para criar a célebre personagem. Mas a realidade foi apenas trampolim para o autor idealizar essa personagem que segue por um enredo aparentemente sem sentido e, que, de maneira sutil, quase indiretamente, diz muito a respeito da personalidade humana.

 

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Godot

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O irlandês Samuel Beckett conseguiu a proeza de colocar um personagem sem rosto, identidade e personalidade definidas entre as maiores criações da literatura moderna. Trata-se do personagem-título de Esperando Godot, um espectro que nunca deu as caras, apesar de Vladmir e Estragon, as figuras em carne e osso da peça de Beckett, acreditarem piamente que ele aparecerá. Considerado um dos textos mais brilhantes do teatro mundial, a peça faz o leitor/espectador refletir sobre os mais variados assuntos se utilizando de uma técnica minimalista, onde as coisas não são ditas por inteiro, fazendo com que o próprio leitor seja, em alguma medida, uma espécie de coautor da obra. Talvez por esse caráter aberto do texto de Beckett, Godot já foi considerado a representação de Deus (o nome do personagem seria uma variação de “God”), morte, esperança ou felicidade. Tudo no plano etéreo, nenhuma linha que faça qualquer descrição física do protagonista do livro. Godot anteciparia características comuns na obra de Beckett, que se tornou um exímio criador de personagens deslocados do mundo real, em situações-limete, como a protagonista de Dias felizes, Winnie, uma mulher de meia-idade enterrada em uma colina e debaixo de sol a pino, que busca se agarrar às poucas coisas que estão ao seu alcance, como objetos de uma bolsa. Escrita originalmente em francês, Esperando Godot foi encenada pela primeira vez em um pequeno teatro de Paris e alcançou êxito inesperado.

 


Ilustrações: Simon Taylor e Theo Szczepanski