Artigo | Luiz Antonio de Assis Brasil

Escrever ficção: o making-of

O coordenador da já lendária Oficina de Criação Literária da PUCRS revela os bastidores de seu livro mais recente, um “manual reflexivo” para aspirantes a escritor

Confesso: nunca passou pela minha cabeça escrever uma obra dessa natureza. Pela cabeça dos meus alunos e ex-alunos, sim, passou. Me sugeriam, alguns pediam francamente, outros exigiam, sob a épica alegação de que eu tinha o compromisso tácito, firmado com a minha geração, de deixar um legado das mais de três décadas de ensino ininterrupto da escrita criativa. Eram generosos em demasia, mimavam-me, mas também, e indiretamente, me lembravam da minha óbvia mortalidade. Eu me sentia o próprio professor Uchida Hyakken, do filme Madadayo, do Akira Kurosawa. Minha resposta invariável era não, não vou escrever e alegava quatro motivos: em primeiro, a preguiça, esse motor da humanidade; em segundo, eu teria de suspender a escrita da minha própria literatura por um bom tempo — boa ou má, só eu poderia escrevê-la; em terceiro, eu não tinha a menor ideia de como se escrevia um livro como esse; e em quarto, o mais importante, eu não escreveria porque sempre me considerei, e ainda me considero, um professor, que pratica, mais do que tudo, o corpo a corpo com o aluno — como eu iria “dar aulas” em forma de livro, sem a presença, sem o olhar, sem o respirar expectante do aluno à minha frente? Com essas respostas, sei claramente, decepcionei o pessoal. Mas o fato é que, aos poucos, eles tiraram a ideia da cabeça e eu voltei à segura, mas sempre fascinante, rotina das minhas aulas.

O que eu não contava é que a ideia passara pela cabeça também do pessoal da Companhia das Letras, o gentilíssimo Luiz Schwarcz à frente. Me convidaram para conversar, fui. A reunião foi bem prazerosa, e o café, bem encorpado. Me fizeram uma proposta concreta, a partir de um conceito: que eu escrevesse um manual que desse indicações de como melhorar a escrita dos aspirantes a escritor. O assunto, portanto, voltava à minha vida. Alegaram que eu tinha a experiência necessária para isso e que inúmeros autores da editora foram meus alunos. Coloquei algumas dúvidas, cada vez menos enfáticas à medida em que transcorria a reunião. Ao fim da tarde eu havia concordado. Mas saí de lá com um grande ponto de interrogação e, talvez, com a desconfiança de que iria cometer uma fraude. 

No voo de retorno a Porto Alegre, a 35 mil pés, comecei a pensar nas razões que me tinham levado àquela situação completamente inesperada. Pensei, é claro, no meu longo itinerário, em especial, da primeira aula da oficina da PUCRS, lá no século XX, com todos aqueles alunos à frente e eu sem saber muito bem como começar. Naquele momento, a meu crédito, eu tinha alguns romances publicados e dez anos de magistério superior. Ao final dessa primeira aula, eu senti que estava comprometido com a oficina. Depois, aquilo se consolidou, criei uma pedagogia — que está sempre em transformação — e com o suceder dos anos vi meus alunos crescendo, ganhando prêmios, publicando em editoras de prestígio, sendo traduzidos, fazendo suas vidas de sucesso. Sim, alguma coisa eu tinha construído, não poderia negar isso a mim mesmo. Mas como eu iria escrever esse livro? A quem se destinaria, eu estava certo: a pessoas que querem escrever ficção e acham que não dominam todas as ferramentas para isso. Então: seria um livro escrito por um escritor para outros escritores. Embora eu seja um professor, também um teórico, senti desde logo que o livro não poderia trazer teoria; a teoria é uma sofisticada extravagância para quem não pensa nisso, e quer apenas escrever uma ficção.

Grandes temas
Um pensamento inicial foi dividir a obra em 30 capítulos, chamados de aula 1, aula 2, etc., até 30, que é o número de encontros da minha oficina completa. Logo vi que não iria funcionar, porque os conteúdos de uma aula se entreveram com os de outra, e eu teria de repetir algumas coisas. A progressão seria bocejante, inclusive para mim mesmo. Então me ocorreu que talvez não fosse má ideia tratar dos grandes temas da escrita de ficção, e que qualquer escolar conhece: personagem, conflito, tempo, espaço, enredo, pois, na verdade, é isso mesmo que faço nas aulas. Soube, de pronto, que o livro estaria recheado de citações de autores literários, que chamei, como orientação de trabalho, de “textos exemplares”, parafraseando o título de Cervantes. Sim, teria de ter muitas citações, muitas. Eu precisava de textos que me dessem razão nos assuntos que eu iria desenvolver. E teria de haver citações de clássicos, modernos, contemporâneos, estrangeiros e nacionais, mulheres e homens. No final resultaram 271 autores citados ou referidos.

    Fábio Santiago
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Luiz Antonio de Assis Brasil ministrando uma oficina de criação literária na Biblioteca em 2017 

Depois, havia uma questão importante: “ficção” é uma generalidade; ela engloba o conto, o romance, a novela. Embora não pareça, são gêneros bastante delimitados e de longa tradição. O meu livro teria de ser suficientemente amplo para atender a essas três formas. Simples assim, eu pensava.

E pensei num título: Sobre Escrita de Ficção. Em boa hora, e depois do livro pronto para ser publicado, Luiz Schwarcz sugeriu algo bem mais simples, estimulante e dinâmico, com um verbo incluído: Escrever Ficção. Muitos amigos foram contra a expressão “manual” do subtítulo, porque achavam que isso diminuía a obra. Mas eu sabia que não era apenas um manual, porque haveria muito de reflexão. Assim, era preferível que os leitores descobrissem isso por si mesmos, o que de fato tem acontecido, conforme consta nas resenhas críticas saídas até agora. Bem, e que tamanho teria esse livro? Um tamanhão, para dar conta de tudo isso. Algo como 250 páginas. No fim de tudo, ficou em 400 páginas.

Quando o avião pousou em Porto Alegre, a tarefa já era um realizável e sedutor pesadelo. Mas eu trazia um bônus na manga. Sucede que, durante a reunião na editora, me foi oferecida a possibilidade de contar com um auxiliar de pesquisa, o que aceitei com alegria, decerto já antecipando a enormidade do encargo. Então, na minha universidade, a PUCRS, havia boas alunas e alunos de nossa graduação, mestrado e doutorado em Escrita Criativa. Alguns tinham sido meus alunos de oficina, e dentre estes, escolhi e convidei Luís Roberto Amabile, um jovem escritor, inteligente e vocacionado, que dava os primeiros passos na carreira acadêmica. O Luís Roberto revelou-se um exemplo de pessoa que entendeu a natureza de sua tarefa, que foi além da simples busca dos textos exemplares que me faltavam, pois ele próprio tinha sugestões excelentes. Muito discutimos, muito conversamos, num trabalho que levou mais de um ano. Ele, por exemplo, me lembrava de coisas que eu havia falado em aula e que seria interessante incluir no livro; noutras, me expunha, com muita franqueza, “não foi bem assim que o senhor falou em aula”. Hoje ele consta como colaborador na obra, e com muita justiça.

Questão essencial
Algo interessante que aconteceu, algo inesperado, foi o quanto eu refleti sobre as questões literárias que eu ensinava como algo consolidado para mim mesmo; o decorrer dos meses da escrita, entretanto, me fez criar novas propostas, que destoam do habitual, e tenho bem presente dois casos. Uma destas se refere ao que chamei de questão essencial da personagem. A personagem é mais relevante do que a história (uma das minhas propostas) e, por isso, o ficcionista deve dedicar a ela o melhor de sua inventividade. A partir de algumas leituras que passaram por Freud, Lacan e Charles Mauron, e conversas com o psicanalista Robson Pereira, cheguei à obviedade: se todos nós possuímos uma questão que vive dentro de nós — e quase sempre ela é causa de sofrimento —, a personagem, porque ser humano, também terá essa peculiaridade e, assim, a tarefa primordial do ficcionista é estabelecer a questão essencial de sua personagem; uma vez isso criado e conhecido, o conflito gera-se quando essa questão se choca com os fatos da vida, e encontrei no Hamlet — mas não só nele — o melhor exemplo.

Outro tema que avancei foi sobre a organização sistêmica da obra ficcional, que tem no centro a personagem e sua questão essencial. O leitor deve entender essa organização interna — e é nossa incumbência fazer com que isso aconteça —, isso lhe possibilitará entender uma obra fragmentada. Assim, substituí a ideia de linearidade pela ideia de sistema. Essas foram “descobertas” que a mim mesmo surpreenderam, e foram para o livro. É possível que não sejam ideias tão novas no plano das diferentes disciplinas literárias, mas serão novas quando a perspectiva é a de quem escreve, não a de quem lê. Isso aconteceu também com o costumeiro ensinamento acerca dos narradores (Norman Friedman à frente) que substituí pela concepção de focalização de Gérard Genette, abandonada ao ferro velho da teoria desde o derretimento do Estruturalismo. A ideia de focalização é bem mais leve, e a que mais serve a quem começa a escrever — mas atenção: fiz tudo isso reduzindo a teoria a um rodapé, fiel ao propósito que deu forma ao livro. Essas reflexões foram desenvolvidas durante a escrita do livro e, o principal, durante as aulas, que, entretanto, seguiam seu andamento normal na universidade. Assim, meus pacientes alunos foram, com todo o respeito, os alegres pilotos de prova das minhas experiências metodológicas, e se divertiam quando eu trazia, para discutir com eles (e experimentar, diga-se) um tema de um livro que ainda era um embrião.

De repente, voltou um assunto que eu pensava plenamente decidido naquele voo de retorno de São Paulo, e voltou com uma constatação: seria impossível que o livro pudesse valer, ao mesmo tempo, para tratar dos três gêneros narrativos. A personagem, por exemplo, e seu desenvolvimento, tal como vinha sendo tratado até àquele ponto do livro, é assunto próprio da novela e do romance, pois, no conto contemporâneo, o que vale é o instante — a tal “fotografia” de que fala Cortázar; o mesmo para a trama, o conflito, etc. O que fazer? Seria impossível “passar por cima” na diferença entre esses gêneros. A decisão foi colocar, aqui e ali, observações mais ou menos deste teor: “isto vale mais para a novela e o romance”; noutros casos, como o tratamento do espaço, do tempo etc., eles podem valer para os três gêneros. Assim, penso que isso ficou resolvido. Foi dessa forma que a obra avançou, crescendo e crescendo a cada semana, gerando descobertas e — por que não? — encantamento.

Romance linear
Quase ao final, mesmo havendo decidido que o livro fosse multiuso, senti que seria uma pena não aproveitar a minha experiência com a narrativa longa e, por isso, incluí um roteiro para a escrita do romance linear. Hesitei de início, pois isso poderia levar a uma sensação de déjà-vu: eu teria de retomar alguns assuntos, mas corri o risco, e agora vejo que esse é um capítulo muito apreciado pelos leitores, senão o mais apreciado.

A tudo isso muito me ajudou meu pensamento racionalista-iluminista, que sei fora de moda numa época em que a razão está em baixa, trocada pela brutalidade. Esse pensamento, contudo, vai me servir até o fim da vida e, a bem dizer, só me ajuda quando o trabalho é me tornar claro e sistematizador, qualidades que penso intrínsecas ao professor, especialmente ao professor que escreve um manual.

Enfim, minhas quatro alegações para recusar a empreitada foram se desfazendo: cessou a preguiça, continuei a escrever minha literatura (Leopold, uma novela), fui entendendo a metodologia do livro à medida em que o escrevia, e penso que consegui, sem grande perda, transpor algo da “aula falada” para a “aula escrita”. Isto é: cumpri o meu propósito e cheguei inteiro ao final. Quanto à qualidade da obra, bem — isso não me compete avaliar. 

Contando o número de caracteres, vejo que ainda me sobra um pequeno espaço, e me permito a uma confidência tragicômica: durante a escrita do livro, tive um diagnóstico médico muito ruim, ruim mesmo, na forma de um laudo. Cheguei à universidade arrastando o mundo nas costas e com o tal laudo incendiando a minha pasta. Um ex-aluno me viu e resolveu me perguntar o que eu andava escrevendo. Disse-lhe, com uma voz certamente deprimida, murmurante, que era um manual de escrita criativa. Resposta dele, cheia de alegre surpresa: “Mas que belo testamento será, professor!”. Pano rápido, como diria o Millôr e suas metáforas teatrais. Depois de uma cirurgia, tudo se resolveu. E o testamento, esse, está aí.


LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL é escritor e professor universitário. Publicou mais de 20 livros, entre eles Concerto Campestre, O Pintor de Retratos e Escrever Ficção: Um Manual de Criação Literária. Coordena, há 34 anos, a Oficina de Criação Literária da PUCRS.