Artigo | Domingos Pellegrini

Montanha não é chata

Um breve cometário de Domingos Pellegrini sobre Os sertões, Euclides da Cunha e João Antônio

Ronaldo Bressane, na edição de março do Cândido, pincelando sobre João Antônio, aproveita para respingar no “chato do Euclides da Cunha”. Isso se justifica se leu apenas a primeira parte de Os sertões, “A Terra”, que é chata mesmo, até por tratar da geologia plana do sertão baiano, cenário da Revolta de Canudos. Mas a parte “O Homem” já é um monumento interessantíssimo de psicologia social, apresentando os personagens daquela revolta com que ele revelaria dois Brasis aos brasileiros, no primeiro livro-reportagem entre nós. Com visão antropológica que ultrapassa a tríade positivista meio/homem/ momento por ele mesmo adotada para estruturar o livro, Euclides ousa até comparar o sertanejo com o gaúcho, com criatividade nada usual nos espíritos científicos.

Em seguida, “A Luta”, além de ser narrativa das mais densas e envolventes, é uma montanha ética, num país com críticos que parecem viver num deserto ético — por exemplo a endeusar incondicionalmente o monstro Machado de Assis, conforme Manuel Bandeira usando a palavra no seu pior sentido.

João Antônio, que conheci em Londrina, me apadrinhou ao levar meu livro O homem vermelho à Editora Civilização Brasileira (que, símbolo de resistência à ditadura militar e fonte de visões para um novo mundo, porém prosaicamente nunca me pagou direitos autorais...). Lembro de João falando entusiasmado de Euclides a louvar a bravura sertaneja e a denunciar, até com fotos, barbaridades do governo republicano, como enviar para prostíbulos de todo o país as 800 mulheres apreendidas em Canudos. Mas isso, claro, é ético, é chato.

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A previsibilidade é chata, mas Euclides foi para Canudos, a convite do jornal O Estado de S. Paulo, como correspondente de guerra de Canudos, pois já escrevera dois artigos no jornal denunciado a revolta como tentativa de restauração monárquica. Chegando lá, porém, ao contrário da própria previsão e do jornal, descobre e revela o Brasil do interior, oposto em pobreza e comportamento ao Brasil do litoral. Descobre que os sertanejos não lutavam pela monarquia, mas por liberdade de crença. Revela a estupidez do Exército a que ele mesmo pertenceu, desde que, cadete ainda no Império, jogou a espada aos pés do ministro da Guerra como protesto republicano. Sua narrativa transborda de comovente compaixão pelos soldados feridos, entretanto também candente admiração pela bravura e pelos valores sertanejos.

Diante de uma república que se afirmava pela força, cunha que o sertanejo é que era, antes de tudo, um forte. Detecta heróis sertanejos e ridiculariza comandantes militares, embora também ressalte o valor dos soldados naquele inferno militar, em relatos de extraordinário impacto e estupenda densidade ética. Foi a Canudos para condenar mas, durante cinco anos na sua cabana de zinco como engenheiro de uma ponte em São José do Rio Pardo, escreveu o livro que compreenderia não só Canudos como todos os sofredores da História.

Num tempo de visões polarizadas, cegas e surdas pelas ideologias, ler Os sertões é escalar uma montanha que, em vez de oferecer simploriedade e fáceis concordâncias, convida a longas vistas e complexas explorações. Até a própria vida de Euclides quebrou qualquer molde usual, ao ser morto pelo amante da mulher, que ele tentou matar, sendo vitimado pela mesma arma e do mesmo homem que sete anos depois mataria seu primogênito Euclides da Cunha Filho. Mas, mesmo que tivesse vivido mais 100 anos, provavelmente Euclides não teria erguido uma nova montanha à altura de seu Os sertões. Chato? Não, não existem montanhas chatas.


DOMINGOS PELLEGRINI nasceu e vive em Londrina (PR). Além de jornalista e cronista, é contista, romancista e poeta. Autor de vasta obra, com mais de 30 livros publicados, dentre os quais O homem vermelho (contos, 1977), Terra vermelha (romance, 1998) e Pequenices (crônica, 2014). Em 2018 publicou o romance Mulheres esmeraldas.