A leitura é o verdadeiro pré-sal 03/03/2017 - 15:50

A partir de sua experiência à frente da Biblioteca Nacional, de 1990 a 1996, o poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna apresenta uma reflexão sobre a importância das bibliotecas e do ato de ler no mundo contemporâneo

Lina Faria/Arquivo BPP
ensaio affonso

Affonso Romano de Sant'Anna durante edição do projeto Um Escritor na Biblioteca na BPP, em maio de 2014.

Entre 1990 e 1996, dirigi a Biblioteca Nacional (BN). Por ali haviam passado figuras notáveis (impossível citar todas). Não sei porquê, lembro de Raul Pompeia —
que, por sinal, como lembrou Paulo Francis, se matou.

A BN veio de Portugal, um luxo para o Brasil. Dizem que pagamos por ela duas vezes, que piratas arrebataram o dinheiro da compra (há muita lenda em torno da BN). Os monarquistas, como D. Pedro II,gostavam de livros.

A BN caiu-me no colo. Nunca havia pensado nisso. Tentaram me levar primeiro para a Funarte. Desisti.Eram tempos de Ipojuca Pontes.Quando me ofereceram a BN eu não sabia em que estava me metendo. No livro Ler o mundo conto algumas coisas.Eu era um simples professor de literatura. Nunca frequentei o poder. Dava minhas aulinhas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Verdade, era meio incherido como cronista.

Andei escrevendo e indagando por que os diversos governos nunca davam valor à cultura. Escrevi em 1980 no Jornal do Brasil o artigo “Sobre a política nacional do livro” e depois,em 1986, o texto “Por uma política nacional do livro”.

De repente, na confusão do governo Collor, fui chamado e entrei coma ingenuidade dos leigos. Não sabia o que me esperava.

Depois da cerimônia de posse,no aeroporto de Brasília, com Marina Colasanti, vi na TV uma cena em que halterofilistas levantavam pesos enormes, e disse a ela: “Não sei como há pessoas que se dedicam a esse esporte”.

Ela apenas ponderou: “É o que te espera.”


De mãos dadas

Na BN havia um caos criado pelo governo Collor. Ele queria (re) inventara roda. Quem mandava era o “inventariante” — figura criada na época. Cada instituição tinha um “inventariante”.

Um terço dos funcionários estava afastado e o prédio, caindo. Eu mesmo fui socorrer um transeunte vitimado.

Os funcionários da BN fizeram comigo uma brincadeira: no corredor,perto da diretoria, puseram obras velha se lixo…

Reuni os funcionários para ouvi-los. Eles imediatamente reagiram:“Quem é esse louco que quer saber o que pensamos?”. Chamei antigas diretoras para me ajudar, como Mercedes Pequeno e Janice Montemor. Vieram.Notáveis! E, minimizando os problemas,em pouco tempo o Jornal do Brasil publicou um estudo: a BN é a instituição federal que melhor funciona no Rio. O sucesso veio confirmado por um prêmio de marketing, quando a Fundação Getúlio Vargas considerou a BN um case de êxito administrativo.


União Nacional

Sempre tive uma mania: pensaras coisas sistemicamente. Por isso pensava que uma BN não pode ser apenas um acidente arquitetônico no centro do Rio, tem que se relacionar com o resto do país. Daí a criação (imediata) do Sistema Nacional de Bibliotecas, juntando todas as bibliotecas do país. Mas não foi fácil. A gente nem ao menos sabia quantas bibliotecas o país tinha.

Começamos a fazer reuniões com os diretores de bibliotecas, nas quais eles podiam expor os seus projetos e contar com nossa ajuda. Em seguida,pensamos também em reunir bibliotecas universitárias. Após reuniões com os reitores de universidades, surgiu a ligação com as bibliotecas universitárias:estava formada uma rede nacional.

E ainda fiz questão de dizer que tudo o que acontecia com a literatura brasileira e com o livro interessava à BN. Foram logo criados programas  que viabilizassem isso. E não interessava apenas à parte nacional, mas também a internacional.

Ajudamos a primeira bienal de Moçambique com livros, participamos da Feira de Frankfurt em 1994, estivemos em outros eventos de diversos países. Fora isto, muitos programas tornaram a BN visível lá fora. Fizemos várias publicações com o Brazilian Book Magazine,que daria notícias para os professores,de todo o mundo, sobre a literatura nacional.

E havia o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), uma ponta de lança dentro do país. O Proler chegou a ser efetivado em dezenas de municípios. Se tivessem deixado o projeto prosseguir, hoje o país seria outro.


A roda é quadrada


Devo esclarecer que a Biblioteca Nacional era uma fundação. A reformado Collor enfiou pela goela da BN a Biblioteca Demonstrativa de Brasília e o Instituto Nacional do Livro. Hoje, voltou tudo a ser como dantes no quartel de Abrantes. O que era para ser apenas uma limonada, transformou-se em um verdadeiro sorvete. As dificuldades nos ajudaram. A gente tem que aprender a ver o que as adversidades têm de bom.

Prefiro contar alguns casos verdadeiros que ilustram essa história.

A primeira coisa pode ser tirada dos jornais da época. Na coluna do Zózimo Barroso, no Jornal do Brasil do dia 20 de julho de 1991, apareceu o seguinte comentário: “Do presidente da BN Affonso Romano de Sant’Anna:‘Descobri que na administração pública a roda é quadrada e a gente tem que fazer a carruagem andar como se a roda fosse redonda’”.

Hoje, uns 20 anos depois, percebo que essa é uma realidade terrível. Quem está fora do governo não tem ideia do drama. O governo é um desmazelo só. Se alguma coisa dá certo, é sorte.

Outra história: tínhamos estagiários que eram trazidos da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem). Uma maneira de tentar inserir os menores nessa coisa que chamamos“sociedade”. Pois bem. Não é que esses garotos traziam toda cultura da periferia e os conflitos das gangues a que pertenciam? Por exemplo:os garotos apanhavam livros nos “grandes armazéns” e mandavam alguns recados que não eram difíceis de entender. Botavam dentro dos livros a sigla do “C.V.” (Comando Vermelho).

Existe recado mais direto?

Conseguimos transformá-los (de alguma maneira). Exemplo é a participação na Bienal, onde compuseram um rap de louvor ao livro e redigiram composições que foram premiadas.

Outra história, desta vez desnorteante e meio estapafúrdia, pois refere-se a duas pessoas conhecidas: Edson Nery da Fonseca e Lúcio Costa.

Quando Fonseca viu o mapa de Brasília (que estava em construção), notou — ele que era um famoso bibliotecário — que haviam esquecido de incluir na capital uma biblioteca. Intrigado,procurou o Lúcio Costa e perguntou onde estava a biblioteca. E qual não foi sua surpresa quando ouviu Lúcio Costa dizer: “Esse negócio de biblioteca nunca deu certo no Brasil”.

Isto está narrado pelo próprio Edson em seus escritos.

Daí o esforço em torno do Proler. Ler o mundo, apreender o que há em volta da gente. Posso dizer que o esforço continua em vários pontos do país. E o que aprendi nesse tempo foi uma coisa que está lá em minha tese sobre Drummond, publicada em 1969, e que é fundamental para quem vive no Brasil: a relação dialética entre o sucesso e o fracasso. Temos que aprendera fracassar para obtermos sucesso — ainda neste texto retomarei o mote fracasso/sucesso.


Complicações e resultados

Os relatórios deixados dizem muita coisa. Mas tive que enfrentar greves absurdas, embora os funcionários nunca tivessem sido tão bem tratados.

Depois que fui demitido, um presidente da associação de funcionários dizia: “Éramos felizes e não sabíamos.”

Uma história construtiva aconteceu e até fiz uma crônica a respeito. No meu prédio eu tinha um funcionário que certo dia me perguntou: “Professor, o senhor acha que uma cidade de 10 mil habitantes merece uma biblioteca?”

A pergunta era insólita e reagi imediatamente: “Que cidade é essa?”.

O interlocutor falou então de Mulungu, no interior da Paraíba.

Comentei: “Você sabe que até conheço o governador de seu estado?”. Era o tempo da gestão do Ronaldo Cunha Lima.

Escrevi uma crônica narrando a conversa e desafiei o governador a fazer uma biblioteca em Mulungu. O governador, excelente repentista, respondeu: “O funcionário acabou voltando à Paraíba e virou vereador na sua cidade”.

Já que não tínhamos dinheiro, pois o orçamento (vejam bem) era 0,035% para todo o Ministério da Cultura — e pensar que o Ministério da Cultura chegou a ter algo perto de 1%. Como se vê, a penúria era geral. Por isto, apelamos para a Fundação Roberto Marinho e para o Banco Real quando foi necessário reformar o prédio.

Nem vou falar aqui da aquisição de novas salas, da agilização do anexo e, sobretudo, da avaliação do acervo da BN: colocamos, sob a liderança da bibliotecária Ana Virgínia, nada menos que 500 novas bibliotecárias para fazer esse levantamento. Descobrimos gravuras, desenhos, coisas incríveis. Está tudo registrado em vídeo.

Mas uma das ações mais gratificantes foi a devolução de obras roubadas do acervo. Há vários exemplos, entre os quais o caso de um antigo funcionário que levava obras para casa, pensando assim guardá-las melhor.

Foto: Divulgação
BN

Sant’Anna esteve à frente da Fundação Biblioteca Nacional entre 1990 e 1996. 


Bibliotecas no mundo

Uma das coisas maravilhosas do meu período à frente da BN foi poder conhecer bibliotecas de vários países. Não bastava a de Washington — a maior do mundo (naquele tempo com 80 milhões de livros, enquanto a nossa BN tinha 9 milhões). Estive na do Egito, na Irlanda e fiquei encantado com a Nova Biblioteca (criada por Mitterrand). Conheci bibliotecas célebres — como a de Coimbra. Ajudei a mandar livros para a biblioteca de Alexandria. Estive até na Rússia.

Mas na Índia vi e me disseram algo impressionante: os EUA têm, na embaixada, uma equipe para arrecadar livros nas dezenas de dialetos locais. Já pensou?

Isto me faz lembrar de algo que aconteceu durante meu período na BN: a embaixada americana enviou caixotes com todos os panfletos espalhados pelo Brasil nos anos 1960. Recolheram tudo. Qualquer protesto valia. E o mais impressionante: estavam nos oferecendo os originais, pois haviam copiado tudo em Washington. Que dizer: têm tudo guardado. Não estranha que sejam os donos mundo!


Fim do livro

Há uma obra chamada Não contem com o fim do livro, na qual Umberto Eco e Jean Claude Carrière discutem a questão que o título sugere. Já escrevi a respeito e tenho a impressão de que o livro, em vez de acabar, vai se transformar.

Dizem que os mandamentos foram escritos na pedra. Já o livro pocket surgiu na década de 1930. Os jornais estão em pânico, encolhendo, acabando. Hoje temos não sei quantos aplicativos. Minhas filhas veem o mundo na tela do celular. Todo mundo tem um ou mais celulares. As redes sociais são uma realidade. Quer dizer: o mundo mudou com a internet. Então eu digo: o livro está, sim, se modificando. Ontem eram os incunábulos, hoje são os aplicativos, amanhã ninguém sabe.

Estou preparado para surpresas.

O livro tem passado por tantas modificações que eu simplesmente digo: o que interessa é a L-E-I-T-U-R-A.Temos que ler o mundo para aprender alguma coisa. Hoje cultiva-se a pressa, o brilho fácil. Mas é a leitura do mundo o fundamental. Os primitivos liam o mundo, até os cães leem o mundo. Temos que ler e interpretar a realidade.

Publiquei recentemente um dos muitos ensaios que fiz sobre o tema, no qual coloquei alguns pontos que me pareceram necessários. Falava-se, há pouco, do pré-sal, que o Brasil teria reservas imensas e, por este motivo, o governo estaria loteando o nosso futuro.

(Aliás, temos que deixar de lado essa estória que o Brasil é o país do futuro. Tal máxima é uma concepção errada da História — a Historia não anda, como queriam meus amigos marxistas, em linha reta)

Nesse mesmo e imenso artigo, eu dizia que a LEITURAé  o verdadeiro pré-sal. Os povos mais desenvolvidos possuem alto índice de alfabetização.

E lembro de um exemplo: enquanto certos prefeitos se recusam a montar bibliotecas, embora governos acenem com promessas de ajuda, a Suécia criou bibliotecas para os latino-americanos exilados. Eles sabem que os exilados precisam alimentar o seu imaginário na própria língua.

Portanto, como venho repetindo, a leitura é o verdadeiro pré-sal.


O fracasso e o sucesso

Comentei com o porteiro do meu prédio nesses dias em que estamos todos perplexos: “Antônio, você sabia que o universo tem 14 bilhões de anos?”.

Acredito que ele está até hoje traumatizado, como também estou. Deixo essa afirmação no ar e volto, portanto, ao tema do fracasso/sucesso. Quem não souber lidar com esses dois elementos, não entenderá nada do que ocorre por aí.

Em minha tese de doutorado, Drummond, um gauche no tempo, tratei disto. Aliás, o “gauche” drummondiano passa por esse dilema. Ele nasce sob os auspícios de um anjo malsinado e carrega a pecha o resto da vida.

O mesmo ocorre com Clarice Lispector. O tema do fracasso / sucesso está presente em sua obra. No livro Com Clarice, que escrevi em parceria com Marina Colasanti, me aprofundo no tema. Pode parecer estranho, incompreensível até, mas é justamente Clarice quem diz: “E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes havia tornado o meu caminho”.

Dou um pulo. Falo disto de outra maneira.

Numa mesa redonda com Francisco Gregório Filho, um dos coordenadores do Proler, de repente, ele falou de outra maneira o mesmo que Clarice e Drummond enunciaram. Gregório dizia que ia falar sobre o fracasso, o que aprendeu com ele. E citou uma série de programas em que esteve que foram abortados, prejudicados e pararam. Achei interessante aquilo: o sucesso do fracasso ou vice-versa.

Portanto, a história da leitura em nosso país é uma história de vitoriosos fracassos. Começa recentemente com Monteiro Lobato, nos anos 20 do século passado, passa por Mário de Andrade e Rubens Borba de Moraes, depois vem Paulo Freire — com quem estive no Recife no Congresso de Cultura Popular em 1962 — e afirma-se com o Proler na Biblioteca Nacional, em 1992.

Termino minhas conjecturas convidando, portanto, todos vocês ao fracasso — uma forma estranha de obter sucesso.


Affonso Romano de Sant’Anna é um dos intelectuais mais atuantes do país. Escreve crônicas para jornais e revistas há mais de meio século. É um dos principais poetas brasileiros, autor de dezenas de livros, entre os quais Que país é este? e Textamentos. Estudou a obra de Carlos Drummond de Andrade, o que resultou no livro
Drummond: o gauche no tempo. O seu ensaio sobre o barroco — Barroco: do quadrado à elipse — joga luzes sobre a realidade nacional. Mineiro nascido em Juiz de Fora em 1937, está há anos radicado no Rio de Janeiro (RJ).

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