Capa | Edgar Allan Poe 05/03/2020 - 14:20

Sozinho contra todos

Dono de uma biografia marcada por perdas e controvérsias, Edgar Allan Poe (1809-1849) cravou seu nome na história da literatura com contos e versos obscuros

João Lucas Dusi

 

 

O nome do escritor e poeta norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) é indissociável do terror e mistério. Mais de 170 anos após sua morte, suas Histórias Extraordinárias (reunidas originalmente em 1859 e publicadas no Brasil por várias editoras) estão enraizadas na cultura pop e seus poemas continuam recebendo atenção — especialmente um sobre uma ave de mau agouro. 

Em 2019, a SESI-SP Editora lançou a 4ª edição aumentada da coletânea “O Corvo” e suas Traduções, organizada por Ivo Barroso, reunindo desde as clássicas traduções francesas de Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé até recriações paródicas e duas versões em cordel. “Devido a sua excelência e originalidade, além do efeito hipnótico de sua estrutura, ‘O Corvo’ transformou-se em um dos poemas mais famosos da literatura universal”, diz a editora Caroline Mori Ferreira, responsável pela publicação. 

Ainda no ano passado, a Companhia das Letras também revisitou os versos do poeta nascido em Boston com a coletânea O Corvo. Ficou a cargo do carioca Paulo Henriques Britto a tarefa de organizar, escrever o posfácio, verter para o português os ensaios “A Filosofia da Composição”, “A Razão do Verso” e “O Princípio Poético” e tecer críticas sobre as traduções do poema que dá nome ao livro, feitas por Machado de Assis e Fernando Pessoa. Esse extenso trabalho, porém, não impede que a opinião do autor seja pouco entusiasmada: “‘O Corvo’ é um texto fascinante, mas está longe de ser um grande poema. É uma ótima leitura para pré-adolescentes”, afirmou em entrevista concedida ao Cândido (leia aqui). 

Essa dualidade com relação aos versos não é de hoje. Desde sua publicação, em janeiro de 1845, na revista American Review, “O Corvo” é motivo de palmas e ressalvas — gente do calibre de Ralph Waldo Emerson e Robert Louis Stevenson disparou comentários desfavoráveis, por exemplo, mas não faltaram elogios a esse poema que trata, basicamente, da desgraça e abandono que acometem o homem que perdeu sua amada. A composição meticulosa da obra, esmiuçada pelo próprio Poe no ensaio “A Filosofia da Composição”, foi notada pelo primeiro resenhador, que “chamava a atenção do público americano para os efeitos de aliteração e o jogo de sons em lugares incomuns, dos quais se valia o poeta para criar um clima suscetível de extravasar os sentimentos de perenidade amorosa [...]”, segundo registra Ivo Barroso no texto introdutório de “O Corvo” e suas Traduções

Mas nada disso se compara ao impacto que o trabalho de Poe causou em Baudelaire. Quando os escritos do norte-americano chegaram às mãos do francês, o autor de Paraísos Artificiais (1851) e As Flores do Mal (1855) elaborou traduções de suas prosas e poemas, em um século em que as versões francesas eram tidas como padrão de excelência e, por consequência, tinham grande alcance. No ensaio “Um Raven e Dois Corvos”, Paulo Henriques é categórico sobre a relação que se estabeleceu: “Baudelaire tornou-se um verdadeiro ‘apóstolo’ de Poe”.

Se esse deslumbramento tem a ver com o teor dos textos, que trazem uma melancolia ferrenha e volta e meia flertam com a loucura e o vício, não cabe a especulação. Mas é um fato que o poeta do Velho Mundo reconhecia a sina de seu colega norte-americano e parecia enxergar na vida miserável que Poe levou — marcada por abandonos, mortes, pobreza e alcoolismo — uma espécie de macabra compensação pelo fato de sua escrita ser tão boa, como se a excelência dependesse do sofrimento. “A natureza torna a vida bastante dura àqueles de quem deseja extrair grandes coisas”, é o que Baudelaire anotou sobre as desgraças vividas pelo companheiro de pena.

 

Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe é autor do poema “O Corvo”. Foto: Reprodução

Gênese do artista

Um casal de atores itinerantes trabalha duro para ganhar o pão de cada dia. Em 19 de janeiro de 1809, em meio ao frio da capital de Massachusetts, Elizabeth dá à luz seu segundo filho, Edgar. No ano seguinte, o pai — David Poe, ator medíocre e dado ao álcool — some sem dar notícias. A mãe, sozinha com duas crianças, engravida novamente. Essa família incompleta vive de migalhas alheias e depende dos esforços da matriarca. Pouco tempo depois, em dezembro de 1811, ela morre de tuberculose, deixando um bebê de colo (Rosalie), um menino de 4 anos de idade (Henry Leonard) e Edgar, o filho do meio, prestes a completar 3.

Os irmãos foram para cantos diferentes. No mesmo ano da morte de sua mãe, Edgar é adotado pela abastada família Allan, de Richmond, Virgínia. O acolhimento foi graças à insistência de Frances Keeling Valentine, esposa de John Allan, que conhecia a situação difícil dos Poe há algum tempo. Houve resistência por parte do patriarca, o que talvez ajude a explicar por que o menino nunca foi oficialmente adotado. É curioso observar esse tipo de percalço desde o início, levando em conta que, dali a pouco mais de duas décadas, após a morte de John, Poe não seria mencionado em sequer uma linha do testamento do rico comerciante. É claro que o fato de os dois terem sido emocionalmente distantes e discutido bastante por muitos anos, uma vez que o filho adotivo deu-lhe um bocado de trabalho, também pode ter contribuído para essa omissão. 

Antes de tudo começar a dar errado, porém, a família embarcou no transatlântico Lothair — em 1815 — e partiu para Londres, onde John iria tratar de negócios e Poe começaria sua educação formal em uma velha academia com tradição medieval. Sobre essa época, há boatos de que uma das atividades dos alunos era copiar nomes das antigas sepulturas do cemitério da igreja da instituição. Não é nada que possa ser comprovado, mas a morbidez dessa ideia contribui para se criar uma aura sombria acerca do autor de contos como “O Gato Preto”, “A Queda da Casa de Usher” e “O Demônio da Perversidade”. Especulações à parte, foi de sua passagem como estudante pela Manor House — em 1817 — que saiu o cenário de “William Wilson”, por exemplo, publicado em 1840 no livro Contos do Grotesco e do Arabesco, sua primeira coletânea. Fica claro, assim, que as memórias de adolescência tiveram importância na construção do universo mítico do autor.  

Charles Baudelaire

O poeta francês Charles Baudelaire foi um grande entusiasta da obra de Poe. Foto: Reprodução

De galho em galho

Os negócios iam mal em 1820, fazendo com que a família Allan retornasse aos Estados Unidos. De volta à Virgínia, Poe retoma seus estudos e passa a se destacar em línguas, além de rabiscar seus primeiros versos. Essas experiências iniciais são de tom satírico, a exemplo de “O tempora! O mores!”, o que indica um traço de caráter que será reforçado ao longo de toda sua vida, fazendo-lhe lidar com seus iguais e com seu próprio tempo de maneira distanciada, sarcástica — constantemente atacando os escritores da época com resenhas negativas, o que lhe rendeu o apelido de “Tomahawk Man” (“O Homem do Tomahawk”, uma espécie de pequeno machado que era utilizado por aborígenes da América do Norte), e com curtas passagens por redações de periódicos — Southern Literary Messenger, Graham’s e Broadway Journal — devido ao seu comportamento irregular.

O princípio dessa vida errante se dá na Universidade de Virgínia, em 1826, onde se dedicou ao estudo de línguas românicas antigas e neolatinas. É em meio ao ambiente acadêmico que Poe começa a jogar cartas e acaba endividado. Além de John se recusar a custear a farra do filho adotivo, retira-o da instituição. É aí que a relação dos dois degringola de vez. Se o patriarca tinha a ambição de que o jovem se tornasse advogado e desse continuidade ao legado comercial da família, o que acontece é um gradual desgaste que culmina com a partida de Poe da casa dos Allan, em 1831. Já não havia por que dar continuidade àquela relação inamistosa, afinal, Frances Keeling Valentine tinha morrido em 1829 — no mesmo ano, aliás, que Edgar lançara Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems, uma edição revisada e ampliada de Tamerlane and Other Poems (1827), publicado quando o escritor já havia saído da universidade e teve sua breve passagem pelo exército norte-americano e a Academia Militar de West Point.

Novamente sem lar, e carregando no peito a morte de duas figuras centrais, ele procura na tia Maria Clemm seu porto seguro — e, naquela casa, encontra uma esposa. Em 1835, casa-se com a prima de 13 anos, Virginia. Para Marie Bonaparte, que publicou um extenso estudo psicanalítico sobre o autor em 1958, o contato de Edgar com as mulheres era mais representativo do que real, isto é, tinha mais peso no imaginário do que em sua satisfação carnal, pelo fato de ele ter passado a vida tentando tapar o buraco deixado pela morte precoce da mãe. Além dessa condição se refletir em sua obra, “repleta de fantasmas de retorno ao corpo materno”, ainda segundo a discípula de Sigmund Freud, vem daí a necessidade de ele constantemente fugir para o estado inebriante oferecido pelo álcool.

Depois de casado, Edgar publicou A Narrativa de Arthur Gordon Pym (1838), sua única incursão pela prosa de maior fôlego, abriu as portas para a literatura policial com o conto “Assassinatos na Rua Morgue” (protagonizado pelo precursor do detetive Sherlock Holmes, Auguste Dupin), viveu em diferentes estados — Nova York, Baltimore, Filadélfia — e, pulando de galho em galho, foi tentando se sustentar por meio da literatura e atividades relacionadas, como aterrorizar seus pares com resenhas impiedosas e ministrar conferências sobre os poetas e a poesia dos Estados Unidos. Até que, em 1847, Virginia morre e esse acontecimento parece drenar suas últimas forças.

“A morte de uma mulher bela é, sem sombra de dúvida, o tema mais poético do mundo.” Essa pode ter sido a justificativa de Poe para elaborar o conteúdo de “O Corvo”, mas a realidade se mostrou mais impiedosa — e bem menos romântica — do que a bravata lírica. A morte de Virginia deixou o homem arrasado. Ele passou por um período improdutivo e, em 1848, tentou se suicidar ingerindo 30 gramas de láudano (tintura de ópio). Não deu certo. Há uma foto de Edgar, tirada um dia após essa tentativa frustrada, que expõe “todas as marcas iconográficas do poeta recém- -egresso dos infernos”, conforme escreve o concretista Décio Pignatari no livro Semiótica e Literatura (1974). 

Um ano depois, em Baltimore, Poe foi encontrado em um estado lamentável em frente a uma taverna e levado para um hospital. Morreu em outubro de 1849, aos 40 anos, em uma situação que serviria bem a um personagem de seus contos — cercado de desconhecidos, sem ter conquistado (em vida) o reconhecimento pelo qual lutou, tendo perdido todas as pessoas que mais amou, enfim, sozinho. Sozinho como provavelmente se sentiu a vida inteira, como estes versos do poema “Só” (1829), em tradução de Augusto de Campos, sugerem: “Desde criança eu não sentia / Como os demais e nunca via / O que outros viam. Sempre quis / Outro querer, de outro cariz. / A minha dor tinha outros veios, / Minha alegria outros anseios, / Minha paixão, diversa lei. / Tudo o que amei, só eu amei”.

 


Ilustração: Tita Blister