Pensata | Irinêo Baptista Netto 05/03/2020 - 15:18

Um bocado de imaginação

A coluna abre espaço para que escritores, tradutores, jornalistas e pesquisadores reflitam sobre temas ligados à literatura, livro e leitura. Nesta edição, Irinêo Baptista Netto mostra que literatura de não ficção também pode envolver um pouco de fabulação

 

Uma matriarca da literatura de não ficção, Janet Malcolm, autora de O Jornalista e o Assassino, hoje com 85 anos, está interessada em escarafunchar o que um texto baseado em fatos é ou não é capaz de fazer.

No livro Lendo Tchekhov, ela confronta (“compara” é um verbo leve demais) 14 versões sobre a morte do escritor russo de “O Beijo”. Todas respeitam alguns fatos básicos: Tchekhov morreu num quarto de hotel; ele foi atendido por um médico alemão; o escritor disse para o médico: “Estou morrendo”, em alemão (Ich sterbe); ele tomou uma taça derradeira de champanhe, depois deitou e morreu. Era 2 de julho de 1904. No quarto, além do dr. Schwöhrer, estavam a esposa de Tchekhov, Olga Knipper, e o estudante Lev Rabeneck, que presenciou a morte por acaso. 

Olga escreveu dois relatos, um em 1908 e outro em 1922. Lev foi escrever sua versão somente em 1958. O médico não deixou um relato próprio, mas foi citado três dias depois como referência num artigo assinado com as iniciais S.S. Um jornalista russo que escreveu sobre a morte no dia seguinte e mais oito biógrafos que publicaram seus livros entre 1937 e 1998 completam a lista de referências. Os fatos básicos não mudam de um relato para o outro, mas os detalhes mudam bastante. E parece que as versões vão ficando mais floreadas com o passar do tempo. Em seu segundo relato, de 1922, Olga escreve:

Ele [Tchekhov] então pegou uma taça, virou seu rosto para mim, abriu seu fantástico sorriso e disse: “Há muito tempo não bebo champanhe”, esvaziou calmamente sua taça, deitou-se tranquilamente apoiado no lado esquerdo e calou-se para sempre. O terrível silêncio da noite só foi perturbado por uma grande mariposa que entrou no quarto como num redemoinho, debateu-se aflita contra as lâmpadas elétricas e voou às tontas pelo aposento (Malcolm, 2005, p. 61-62).

Numa biografia de 1950, A Life of Chekhov (Uma Vida de Tchekhov), Irène Némirovsky descreveu a mesma cena assim: 

Uma grande mariposa negra entrou no aposento. Voou de encontro às paredes, lançando-se contra as lâmpadas acesas, caindo dolorosamente no chão, com as asas chamuscadas, para esvoaçar de novo, no seu voo cego, impulsivo. Então, encontrando aberta a janela, desapareceu na noite sombria e amena. Nesse meio-tempo, Tchekhov tinha parado de falar e respirar: sua vida tinha chegado ao fim (Malcolm, 2005, p. 66).

As leituras de Malcolm culminam na biografia publicada por Philip Callow em 1998, Chekhov: The Hidden Ground (Tchekhov: A Base Oculta), em que ele usa detalhes que tinham sido inventados pelo escritor Raymond Carver numa coletânea de contos publicada nove anos antes: surge um telefone que o médico usa para pedir uma garrafa do melhor champanhe disponível no hotel; surge um jovem que levou o champanhe até o quarto e que tinha a aparência cansada e o paletó abotoado pela metade; e surgem três taças, uma bandeja de prata e um balde de gelo. Carver construiu um relato meio ficcional e meio factual da morte de Tchekhov, e Callow tomou tudo como fato, usando as informações na biografia sem fazer a devida referência (Malcolm descobriu a manobra porque conhecia o conto de Carver). “Carver pecou contra o espírito da ficção tanto quanto Callow pecou contra o espírito dos fatos. Como Callow não nos informa o que ele pegou de Carver, da mesma forma Carver não nos informa o que ele pegou de Olga e dos biógrafos”, diz Malcolm (2005, p. 69). 

Para o jornalista Otávio Frias Filho, com os relatos da morte de Tchekhov, Malcolm faz um “exercício fascinante de crítica comparada”:

O leitor sai da experiência [de ler Malcolm] persuadido de que Tchekhov morreu de forma não muito diversa da narrada (não há discrepâncias relevantes entre os relatos), mas também de que sua morte, tal como realmente ocorreu, jamais será conhecida. Malcolm deduz dessa cena a trivialidade de toda biografia, e filosofa que o âmago morre conosco, o que perdura é a casca (Frias Filho, 2011, p. 165-166). 

No episódio da morte de Tchekhov, as informações elementares foram respeitadas por autores diferentes. Mas há casos em que até um dado aparentemente simples consegue virar um problema. Num exercício parecido com o de Janet Malcolm, e posterior, o escritor George Saunders, no romance Lincoln no Limbo, extrai fragmentos de dezenas de livros históricos para criar uma narrativa que se passa no cemitério em que foi enterrado o filho de Lincoln, Willie, que de fato morreu aos 11 anos, de febre tifoide. Não é fácil descrever a obra de Saunders. Ele mistura fragmentos históricos, devidamente referenciados com livro e autor (resta saber se são todos do mundo concreto, mas vários são), com o que dizem personagens fictícios (como os fantasmas que habitam o cemitério). Esses fantasmas ficam comovidos com aquele homem alto e magro que continua a visitar o túmulo de seu filho (na ficção, Lincoln volta ao cemitério várias vezes para abraçar o corpo do menino morto e os fantasmas querem saber do menino — do fantasma do menino — qual é a sensação de ser tocado assim por alguém vivo quando se está morto?). 

Nesse contexto, há um momento em que Saunders (2018, p. 228-229) procura montar um retrato de Lincoln a partir de descrições encontradas em textos históricos e algo simples como a cor dos olhos do presidente americano se torna um mistério indecifrável:

Seus olhos cinza-escuros, límpidos, muito expressivos, variando conforme o estado de espírito. 

The Life of Abraham Lincoln, Isaac N. Arnold.  

Seus olhos eram claros, penetrantes, com uma luminosa coloração cinzenta.

Lincoln’s Photographs: A Complete Album, Lloyd Ostendorf, relato de Martin P. S. Rindlaub.

Olhos entre o cinza e o castanho enterrados sob grossas sobrancelhas e circundados por rugas profundas e escuras. 

Personal Recollections of Mr. Lincoln, Marquis de Chambrun.

Seus olhos eram de um castanho-azulado. 

Herndon’s Informants, editado por Douglas L. Wilson e Rodney O. Davis, relato de Robert Wilson.

Seus olhos eram de um cinza-azulado — embora sempre escurecidos pelas pálpebras superiores, anormalmente pesadas.

Six Months in the White House: The Story of a Picture, F. B. Carpenter.

Bondosos olhos azuis, semiencobertos pelas pálpebras. 

With Lincoln from Washington to Richmond in 1865, John S. Barnes.

Eu diria que os olhos do presidente Lincoln eram de um cinzento-azulado ou de um azul-acinzentado, porque o azul, sem ser dominante, sempre era visível. 

Notas de Ruth Painter Randall, relato de Edward Dalton Marchant.

Diante dessa profusão de cores, não há como saber qual é a informação certa ou a mais próxima da realidade. Não há acordo. Quem tem razão? (Além disso, como mostrou Malcolm no caso dos biógrafos de Tchekhov, o exercício de escrever um texto de não ficção envolve às vezes um bocado de imaginação.)


IRINÊO BAPTISTA NETTO é jornalista e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Escreveu para os jornais Folha de S.Paulo e Gazeta do Povo.


Ilustração: Tita Blister