Entrevista | Paulo Cesar de Araújo 05/03/2020 - 14:28

O invasor

Convidado da 3ª Festa Literária da BPP, o historiador e biógrafo falou sobre liberdade de expressão, seu método de trabalho e os bastidores do processo movido contra ele por Roberto Carlos

 

Amarildo Henning

Paulo Cesar Araújo

 

Publicado — e recolhido — há mais de 13 anos, o livro Roberto Carlos em Detalhes (2006) ainda dá o que falar. Símbolo da luta pela liberação da publicação de biografias não autorizadas, a obra censurada pelo “Rei” foi o assunto central de um bate-papo com o historiador baiano Paulo Cesar de Araújo realizado durante a 3ª edição da Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná (Flibi), em outubro do ano passado.

Durante o encontro, mediado pelo jornalista José Carlos Fernandes, Araújo falou sobre os bastidores do processo movido contra ele pelo cantor — tema de outro livro, O Réu e o Rei: Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes (2014) —, o apoio que recebeu de figuras de peso da classe artística e as diferenças entre os métodos de jornalistas e historiadores. “Os jornalistas, às vezes, aceitam a fonte sem maiores questionamentos. O historiador, até por dever de ofício, está sempre ali problematizando a fonte”, diz o escritor, que só viu seu livro ser liberado em 2015, quando o Supremo Tribunal Federal derrubou a necessidade de autorização prévia para esse tipo de publicação.

Objeto de estudo

Desde o momento em que eu me propus a pesquisar, escrever e refletir sobre a obra de Roberto Carlos, ele é meu objeto de estudo. Então, tudo o que aconteceu, que pode vir a acontecer, encaro como parte do trabalho. Vou apenas acrescentando informação. Qual foi a tese principal dele para pedir a proibição do livro? “Que a minha história, bicho, é um patrimônio meu. Esse cara, ao escrever esse livro, se apropriou do meu patrimônio.” Por isso pediu minha prisão e R$ 500 mil por dia. Ele acredita que a história é uma propriedade particular, e quem escreve um livro sobre ele sem autorização está se apropriando disso. Eu quis dar um nó na cabeça do Roberto Carlos quando escrevi O Réu e o Rei: Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes. Mas, para além disso, é contar uma luta por maiores liberdades públicas. Meu livro foi o caso mais emblemático, mas logo depois uma biografia de Guimarães Rosa foi proibida, do Noel Rosa, do Lampião também. Essa visão patrimonialista da História estava se alastrando por vários setores — influenciados por Roberto Carlos, inclusive. Sendo personagem, tendo acesso às informações, ter participado dos bastidores, me senti na obrigação de relatar isso. É um livro do qual me orgulho muito por tudo o que aconteceu, até porque nós fomos vitoriosos nessa luta. Esse debate chegou ao STF, em junho de 2015, com nove votos a zero. Houve unanimidade, algo raro. A minha ideia era responder essas perguntas: quem é Roberto Carlos, de onde ele veio, quem ele influenciou, por quem foi influenciado? E partir para outros livros, outros projetos. Mas, em função da proibição, de toda repercussão e de todo fato novo, percebi que esse tema por si só daria um livro. 

Encontro com o Rei

Fiquei 15 anos tentando uma entrevista com o Roberto Carlos. Quando comecei a pesquisa do livro, eu estava ainda na faculdade, mas estava pesquisando a música brasileira inteira. Então fui entrevistar Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nelson Ned, Waldick Soriano e, ao mesmo tempo, tentando entrevistar Roberto Carlos. As respostas que eu queria, as questões que coloquei no livro, consegui responder mesmo sem uma entrevista pessoal, pesquisando em outras entrevistas e personagens em volta. O meu encontro com ele, frente a frente, foi exatamente no Fórum Criminal da Barra Funda. Eu estava lá com o meu objeto e ao mesmo tempo meu algoz. Quando vi o desenrolar da audiência, e quando percebi que ele não queria só proibir o livro, mas queria todos os exemplares que estavam no depósito da editora e que os outros fossem recolhidos, foi aí que levantei e disse: “Roberto. Isso que está sendo decidido é ruim para mim, é ruim para o livro, para a editora, mas é ruim principalmente para você. Queimar livros no século XXI é barbárie. Isso nos remete ao nazismo, às ditaduras. Isso vai ser uma mancha na sua biografia. Não a que eu fiz, mas a sua própria”. Mas não teve jeito, e ele falou: “Não. Eu quero que fique o que foi acordado”. E assim foi.

De fã a biógrafo

O historiador tem não só que escolher um tema, ele tem que explicar o tema e compreender os personagens. Conhecendo o Roberto Carlos como eu conheço, sabendo de suas limitações, das contradições, isso não me atinge pessoalmente. Não é a mim que ele está atingindo. O Roberto nunca teve intimidade com livro, ele nunca foi um leitor. A formação dele não foi essa, ele sempre leu revistas em quadrinho, gibis, viu televisão — Fantástico, Big Brother, novela. Nesse sentido, ele é um cidadão comum como qualquer outro. Claro que não concordo, por isso que estou sempre exaltando o cantor / compositor, mas problematizando o censor. Uma coisa é o Roberto Carlos, o cidadão, outra coisa é o artista, sua obra. Não acho que “Detalhes” seja uma música feia ou que “As Curvas da Estrada de Santos” ficou uma música menor depois que ele me processou. Agora, o cidadão Roberto Carlos tem suas limitações, tem uma visão patrimonialista; é uma figura conservadora em vários aspectos — em outros, progressista. Roberto Carlos sempre esteve lá e eu, aqui. Sou um pesquisador, historiador, ele é meu objeto, e daqui vou analisando. 

Entrevista

Proibição

Ele proibiu o Roberto Carlos em Detalhes porque desde 1965 a luz não acende se ele não manda acender, e não apaga se ele não manda apagar. Imagina o cara ficar 50 anos com tudo acontecendo do jeito que ele quer, aí aparece um livro, de uma pessoa que ele não conhecia, dizendo tudo que um dia ele queria contar, e o que ele não queria também. Ele sentiu como se o chão estivesse fugindo aos pés dele. Então, independentemente do conteúdo, não foi uma frase do livro, nem um assunto, ou tópico. Por isso que ele quis proibir o livro inteiro.

Trabalho minucioso

Parei de esperar por uma entrevista quando consegui responder as questões. Por exemplo, eu queria contar a história de todos os grandes sucessos do Roberto Carlos, como nasceu “Detalhes”, “Emoções”, “As Curvas da Estrada de Santos”. Se ele tivesse me dado um entrevista, isso ia ser resolvido em duas horas. Como não tive essa entrevista, precisei de mais tempo para vasculhar todas as possíveis entrevistas que ele deu ao longo da carreira. Um rapaz lá do Rio Grande do Sul tinha uma fita de uma entrevista do Roberto para a Rádio Guaíba em 1972. Lá, ele falava um pouco de como fez “Detalhes”. Para outro jornal, lá da Paraíba, ele falava mais outra coisinha em 1975. Fui montando o quebra-cabeça, pegava uma informação aqui, outra ali, e ao fazer isso ao longo de 10, 15 anos, montei tudo. Deu mais trabalho, tive que vasculhar muita fonte, onde tinha um rastro do Roberto Carlos eu ia. Entrevistas, rádio, televisão, além das pessoas que eu entrevistava. Por isso que muita gente se surpreende ao ler o livro, porque vê que o Roberto está falando o livro inteiro, mas não deu nenhuma entrevista para mim. 

Aliados

Quando saí da audiência de conciliação, vi que meu trabalho de 15 anos tinha sido destruído nessa audiência de cinco horas. Quando chega segunda-feira, meu editor deixa um recado: “Você leu o que o Paulo Coelho escreveu hoje na Folha?”. Não entendi nada. Por que eu tenho que ler o que o Paulo Coelho escreveu na Folha? Quando fui ver, ele escreveu um artigo criticando o Roberto, a Editora Planeta e questionando “como se fazia uma proibição dessas em plena democracia?”, “quem é Roberto Carlos para fazer isso?”. Esse artigo foi como o Sol depois de uma noite de sombra, porque vi que não estava sozinho. Até porque a repercussão do próprio artigo foi imediata. Em pouco tempo, o mundo inteiro estava falando da proibição do meu livro. Nelson Motta escreveu um artigo me defendendo, ele que é amigo de Roberto Carlos. Zuenir Ventura, Elio Gaspari, outros artistas, amigos, professores. Em nenhum momento me senti sozinho, abandonado, nem derrotado. Ao contrário, o Roberto Carlos pode ter sentido isso. Quando as pessoas perceberam que ele queria queimar e proibir livros, aí foram críticas e mais críticas.

Limite da privacidade

O critério que eu uso, e isso é algo subjetivo, é que se um fato particular da vida dele não tem qualquer interferência, consequência, não tenho motivos para contar. Por exemplo, o artista sofre de asma. OK, ele é um asmático, em princípio não tenho que ficar falando da asma. Agora, se pelo fato de sofrer de asma ele começa a faltar shows, uma turnê é cancelada, ou então ele faz uma música “As Noites que Passei Sofrendo de Asma”, aí se torna relevante. E tenho que explicar a asma desse artista, estudar o que é asma, que doença é essa. Se você vai escrever uma biografia, não tem jeito. A biografia é uma relação entre vida e obra. Não poderia escrever uma biografia e não falar que o Roberto Carlos perdeu uma perna num acidente. Aí eu não faria uma biografia, faria um ensaio analítico ou então um perfil biográfico, pegando só um lado. O próprio gênero literário “biografia” é perturbador mesmo, ele é invasor pela própria natureza, mas é assim desde que ele surgiu. O meu compromisso é com a história, com o leitor, com a investigação, com a pesquisa, não com o personagem.

Reacionários

Quando a gente pensa no Brasil, nós precisamos entender que a gente vive em uma sociedade em que parte dela é reacionária. Isso é parte do Brasil, nós somos isso também. É muito bacana a liberdade de expressão, defendemos isso, e está garantido na constituição. Mas, em alguns momentos históricos, essa parte mais sombria aflora mais. E esse pensamento vai aflorar com mais força se tiver reforços, apoio. Por isso que nós, que defendemos um outro ponto de vista, devemos ficar atentos. Tivemos momentos de uma maior liberdade pública, mas estamos agora em um momento muito delicado, porque esse setores estão se sentindo fortes, estão ganhando visibilidade e estão mais afoitos.

   Divulgação

Roberto Carlos

Roberto Carlos moveu um processo contra o historiador Paulo Cesar de Araújo, autor de sua biografia não autorizada

Livro de memórias

No instante em que se consagrou o direito dos biógrafos de livremente produzir livros no Brasil, claro que vários personagens falaram: “Bom, eu mesmo vou escrever meu livro”. Paula Fernandes fez, Rita Lee, Fernanda Montenegro… Nunca se fez tanto livro de memórias como depois de 2015. Mas acho isso bom. São fontes para um biógrafo. Então, o que é um livro de memórias? É o personagem contando o que ele acha que deve contar, o que é relevante para ele. O nome já diz, é um livro de memória. Por exemplo, o Chaplin escreveu Minha Vida. Contou tudo, a infância, o pai, a mãe, a história de todos os filmes dele, como surgiu a ideia. Estranhamente, Chaplin não fala nada do filme O Circo. Ele não quis contar nada por ser uma fase ruim da vida dele, ou porque ele não gostou do filme? Agora, um biógrafo não pode se permitir isso. Ele não pode falar só dos filmes que ele gosta de Chaplin, isso não é biografia. Inclusive, um biógrafo tem que problematizar por que Chaplin não falou de O Circo. Isso é trabalho do biógrafo, ele tem que ter uma tese para explicar isso. 

Análise da fonte

As biografias que gosto de ler são sempre aquelas que usam o personagem como uma espécie de janela para você compreender uma época, essa relação do artista com o seu tempo. São os livros que procuro fazer também. Tendo esse olhar histórico, essa contextualização das ações humanas, do personagem no seu tempo, a sua relação com os embates, com as polêmicas, para além daquilo que é pessoal. Quando você lê um livro escrito por um historiador, você percebe as nuances, ele costuma ter uma análise mais crítica da fonte. Os jornalistas, às vezes, aceitam a fonte sem maiores questionamentos. O historiador, até por dever de ofício, está sempre ali problematizando a fonte. Mas, por outro lado, o texto do jornalista, até pelo hábito de escrever, costuma ser mais saboroso.

Livre manifestação

O Ruy Castro fala que só escreve sobre pessoas mortas. Eu já não tenho a mesma opinião, tanto que escrevi sobre um personagem vivo. Para mim todos estão vivos. Não existe biografia definitiva, as fontes estão sempre aí, vivas, coisa que estava oculta aparece. Mas, voltando à questão dos direitos, o artigo 5º da Constituição diz que é livre a manifestação intelectual, artística, científica, jornalística, independentemente de censura ou licença. Vale para livro, biografia, cinema, documentários, teatro, artes plásticas, toda produção. Agora, se você usar a imagem da pessoa para vender camiseta, aí já é outra coisa, porque você está usando a imagem para uma finalidade estritamente comercial. Livros, filmes, embora sejam vendidos, sua finalidade é cultural, produção de memória. E para isso não é preciso autorização.

Versões da história

Isso é uma das coisas mais difíceis, você trabalha com versões. Você está entrevistando um personagem, ele te conta uma história e você fala: “Caramba!”. É preciso, muitas vezes, ponderar e ver em que circunstância ele está falando isso. Aí tem que confrontar com outras fontes, ouvir outras versões. Não pode ter aquela ingenuidade de que se ele falou isso, aconteceu. E isso dá trabalho, é um ofício, mas ter consciência de que aquilo é uma construção é importante. Você vai encaixando em um quebra-cabeça. O biógrafo é um reconstrutor de existência, reconstruindo pontes, amarrando. Não é só você pesquisar, não é só obter o depoimento.

O fenômeno

O personagem Roberto Carlos é tão rico, viveu tantas experiências. Um menino que começa cantando aos 9 anos, já tendo perdido uma perna aos 6, você imagina como a vida foi testando ele. Aos 15 anos ele acha que se ficar em Cachoeiro não vai crescer, então pega o trem e vai para Niterói. Lá, ele chega nas rádios querendo ser contratado, mas era um menino interiorano, tímido, com uma voz fora do padrão. Era tudo contra ele. Eu desconfiava que, com esse momento tão difícil, em algum momento ele teria desistido e pensado em voltar para Cachoeiro. Mas como que eu posso dizer isso se, todas as vezes em que foi perguntado, ele dizia: “Não, sempre tive fé”. Aquela visão já construída de estar destinado ao sucesso. E ele não voltou porque no mesmo momento os pais decidem ir para o Rio. E em 1957 ele vai conhecer Tim Maia, Erasmo Carlos... Com o Roberto Carlos você não tem um mito fundador. Foi uma coisa passo a passo, ele foi testado, temperado. A única coisa possível de dizer é que o Roberto se torna um fenômeno seguro de si, do seu sucesso, em dezembro de 1965, quando lança “Quero que Vá Tudo Pro Inferno”, e se torna o mais popular artista do Brasil. Isso historicamente você identifica. Essa música coloca ele onde está hoje, o Rei. Agora, essa personalidade, no caso dele, foi algo construído passo a passo nas recusas, nas negativas, nos vários “nãos” que recebeu.