De Escritor para Escritor | Luci Collin 05/03/2020 - 14:32

Escrever o mundo deriva de ver o mundo. Isso que parece óbvio, na verdade remete a uma experiência complexa que é o compromisso que um escritor tem de desenvolver um olhar especial para as coisas do mundo. Pessoas, insetos, relva, lixo, texturas, mares, cores, areias, sorrisos, angústias, abraços, injustiças: coisas do mundo. Esse compromisso de se ter olhos amorosamente perceptivos é um pacto que alimenta a essencialidade da escrita. Buscar humilde e pacientemente uns olhos atentos, empenhados em observar não só a instância visual das imagens, mas tudo que os sentidos nos oferecem, é abrir-se em leituras. Olhos são metáforas, que são acesso.

Acredito na palavra compromisso. Para aprofundá-la, levanto aqui uma questão que costuma aparecer quando alguém começa a se envolver com a escrita: o talento. Como administrar o dom da escrita? Ele, o misterioso talento, é o que determinará sua voz, sua dicção de escritor / a, afinal? Bem, compromisso é um entendimento fundo de tendências, competências, percepções e... de talento.

Talento

Algo que me intrigou desde sempre é o talento. Quando comecei a escrever, tive a oportunidade de mostrar meus textos para a grande poeta Helena Kolody. Fui algumas vezes à casa dela, e em todas essas ocasiões ela enfatizava que estudava diariamente alguns poemas. Eram haicais. Tinha alguns emoldurados na sala do seu apartamento. Me mostrava a riqueza da forma. Discorria sobre o impacto filosófico dos versos. Evidenciava, com olhos apaixonados, que poesia era ao mesmo tempo um atingir-se o mais profundo pela expressão do mais simples. Hoje ainda me emociona pensar que aquela poeta extraordinária “estudava” aqueles poeminhas grandiosos e deles se alimentava incessantemente. Isso é ter o sentido e a dimensão do compromisso.

 

Quase nessa mesma época, início da década de 1980, iniciei o bacharelado em Música na Embap. Ali, em meio aos meus jovens colegas, todos buscando administrar seus talentos, um dia recebi um ensinamento que foi decisivo, dado pelo nosso professor de Contraponto, Pe. José Penalva, excepcional compositor, que nos disse: “Talento é a obrigação que alguém tem de estudar muito”. Naquele momento entendi a dedicação de Dona Helena: há que se estudar para ser escritor, não basta ter talento. Mas não é apenas o estudo formal, de técnicas e regras. O “estudo” para o escritor é um compromisso de se aperfeiçoar o olhar, depurando-o a um grau máximo de perceptividade. Como apurar o olhar? Lendo. Lendo muitos e muitos livros. E lendo pessoas. Nuvens. Esculturas. Lendo ondas na praia. Lendo o mundo.

Música

Me fiz escritora a partir de uma formação na música. Estudei piano desde pequena e sempre me encantou aquilo de construir um entendimento das narrativas tendo por base o texto musical. São muito parecidos o musical e o literário, a coisa das formas, da unidade, da semântica, do fraseado, das vozes, do colorido. E penso também nas melodias, na música que os personagens entoam em suas falas, nos sons que os cenários apresentam. Ao ler partituras, aprendi muito sobre literatura, sobre a escrita. A experiência com uma das linguagens artísticas ilumina a expressão de outra arte. Olhares múltiplos num único olhar.

Todo escritor, para cumprir amplamente sua função perante seu tempo sensibilizando outras pessoas, deve estar disponível para ler linhas / entrelinhas da nossa existência. Como dizer do mundo se se olha apenas para o mundinho? Há que se cuidar com o pequeno que não tem nada de delicado, com o pequeno que é oco e indiferente, com a pequenez que usa a Arte para promoção do que é violento, egocêntrico, vulgar, discriminatório. Ser escritor é compromisso sério porque escrever é transformador, revela e constrói percepção, voz e liberdade. Constrói humanidade para além do antropocêntrico e nos coloca em redes. O compromisso: escrita e leitura são experiências preciosas e únicas. Pretende enveredar pela senda da escrita? Busque os melhores olhos. Olhos com os quais se vê tudo o que pulsa pedindo para ser emancipado. Que seu talento seja transmutação e transcendência, num compromisso apaixonado de escrever o mundo. 


LUCI COLLIN é autora, entre outros, dos livros de contos A Peça Intocada (2017) e A Árvore de Todas (2015), do romance Papéis de Maria Dias (2018) e dos poemas de Rosa que Está (2019) e A Palavra Algo (2016).  

 

Foto: Amarildo Henning